quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Tributação de atividades ilícitas, criminosas e imorais. Última Parte.

O art. 3.º do Código Tributário Nacional define o tributo como:

Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Como bem ensina Ricardo Alexandre
[1], é exatamente neste ponto que reside a diferença entre o tributo e multa. Apesar de ambos serem receitas derivadas, a multa é, por definição, justamente o que o tributo, também por definição, está proibido de ser: a sanção, a penalidade por um ato ilícito.

O tributo não constitui finalidade sancionatória, visa arrecadar e a intervir em situações sociais e econômicas. Já a multa é sanção por ato ilícito e o ideal é que não arrecade, pois visa a coibir o ato ilícito.

Aduz também o mesmo autor que o dever de pagar o tributo surge com a ocorrência, no mundo concreto, de uma hipótese abstratamente prevista em lei (o fato gerador). Portanto, se alguém obtém disponibilidade econômica ou jurídica de rendimentos, passa a ser devedor do imposto de renda (Art. 43 do Código Tributário Nacional), mesmo se esses rendimentos forem oriundos de um ato ilícito, ou até mesmo criminoso, como no caso em questão da venda de carne clandestina, como também a corrupção, o tráfico ilícito de entorpecentes, etc.

A justificativa para o entendimento é que, nesses casos, não se está punindo o ato com o tributo. A cobrança ocorre porque o fato gerador aconteceu e deve ser interpretado abstraindo-se da validade jurídica dos atos praticados.

Alguns entendem que o Estado, ao tributar rendimentos oriundos de atividades criminosas, estaria se associando ao crime e obtendo, imoralmente, recursos de uma atividade que ele mesmo proíbe. Entretanto, seria injusto cobrar imposto daquele que trabalha honestamente e conceder uma verdadeira “imunidade” ao criminoso. Nessa linha de raciocínio, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar um caso sobre tráfico ilícito de entorpecentes, entendeu que, antes de ser agressiva à moralidade, a tributação de tais atividades é decorrência do princípio da isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética (Habeas Corpus 77.530-4/RS).

A expressão “não constitua sanção de ato ilícito” enfatiza que a prestação tributária não constitui sanção de ato ilícito, ou seja, que a atividade ilícita não pode ser definida como hipótese de incidência do tributo. Mas isso não quer dizer, como doutrina Hugo de Brito Machado, que se a situação prevista abstratamente na lei como hipótese de incidência vier a se materializar por circunstância ilícita, que o tributo não seja devido. Nesse caso, o mencionado jurista esclarece que o tributo será devido não “que incida sobre a atividade ilícita, mas porque a hipótese de incidência do tributo, no caso, que é a aquisição da disponibilidade econômica dos rendimentos, ocorreu.”

Esse deve ser o entendimento porque a hipótese de incidência é um fato econômico ao qual o direito empresta relevo jurídico. Assim, quando a lei tributária define determinada situação como hipótese de incidência de tributo, leva em consideração que essa situação serve de medida da capacidade contributiva da pessoa. Disso decorre que para a lei tributária o que interessa é a relação econômica ínsita em um determinado negocio jurídico. Daí o art. 118 do Código Tributário Nacional rezar que:

Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se:
I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos;
II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos.

Desse modo, não interessa ao intérprete da definição legal de hipótese de incidência do tributo a natureza do objeto do ato, se lícito ou ilícito. Por outro lado, o art. 126 do CTN dispõe também capacidade tributária passiva independente, dentre outras circunstancias, da capacidade civil das pessoas naturais porque, o que interessa para o direito tributário é que se materializou a situação definida em lei como hipótese de incidência do tributo.

A questão, não é, propriamente, a de se tributarem ou não os atos ilícitos. Ato ilícito, como tal, não é fato gerador de tributo, mas suporte fático de sanção, que (mesmo quando se cuida de infração tributária) com aquele não se confunde (CTN, art. 3.º). Dessa forma se, “A” furtou de “B” certa quantia, não se pode, à vista do furto, tributar “A”, a pretexto de que tenha adquirido renda; cabem, no caso, as sanções civis e penais, mas não tributo. Alfredo Augusto Becker chama a atenção para o fato de que, mesmo nos chamados impostos “proibitivos” (extrafiscais
[2]), não há tributação de ilícito: enquanto a sanção busca impedir ou desestimular diretamente um ato que a lei proíbe, o tributo extrafiscal visa a impedir ou desestimular, indiretamente, um ato que a lei permite, o que demonstra que o ilícito é o elemento de distinção entre a sanção e o tributo.

O problema surge na fase de lançamento, vale dizer, ao investigar a ocorrência do fato gerador (cuja descrição legal não é integrada por uma ilicitude), pode ignorar a ilicitude que eventualmente se constate no exame do fato concreto?

A resposta, dependendo da natureza ou das características dos fatos, pode ser positiva. Desde que a situação material corresponda ao tipo descrito na norma de incidência, o tributo incide. Assim, por exemplo, o exercício de profissão (para o qual o indivíduo não esteja legalmente habilitado) não impede a incidência de tributo sobre a prestação do serviço ou sobre a renda auferida; não se tributa o descumprimento da norma legal que disciplina o exercício regular da profissão, mas o fato de executar o serviço, ou o fato da percepção da renda. O advogado impedido que, não obstante, advogue, ou indivíduo inabilitado que, apesar disso, clinique como médico, não podem invocar tais circunstâncias para furtar-se ao pagamento dos tributos que incidam sobre suas atividades, ou sobre a renda que aufiram, a pretexto de que o fato gerador não se aperfeiçoaria diante das irregularidades apontadas.

Tal alusão doutrinária foi apontada em decorrência da situação dos garimpos ilegais existentes no estado do Pará. É importante ressaltar que esta ilegalidade, conforme elucidação doutrinária apontada acima, não exime os empreendedores rurais dos pagamentos dos tributos relacionados ao abatedouro de carnes clandestinas.

Esta possibilidade é conhecida na doutrina como o Princípio do Pecunia Non Olet (dinheiro não cheira). A expressão, hoje tão popular entre os tributaristas, surgiu de uma situação, no mínimo, curiosa.

Ressalta mais uma vez Ricardo Alexandre
[3], que um dos mais bem sucedidos imperadores romanos, Vespasiano, instituiu um tributo, semelhante a atual taxa, a ser cobrado pelo uso dos mictórios públicos (latrinas). Seu filho, Tito, não concordou com fato gerador tão “malcheiroso”. Ao tomar conhecimento das reclamações do filho, Vespasiano segurou uma moeda de ouro e lhe perguntou: Olet? (Cheira?). Tito respondeu: Non-olet (Não cheira).

Não importava, portanto, se o “fato gerador”, lá na latrina, cheirava mal, o dinheiro de lá proveniente não tinha o cheiro da origem. A sabedoria popular explicaria o pensamento de Vespasiano de outra forma: “dinheiro é dinheiro”.

Aplicando a lição histórica neste estudo, é possível afirmar que não importa se a situação é “malcheirosa” (irregular, ilegal ou criminosa): se o fato gerador ocorreu, o tributo é devido.

Assim, a título de exemplo, para evitar o que aconteceu com Al Capone (condenado e preso por sonegação fiscal), o criminoso teria de informar os rendimentos do crime na declaração entregue a Receita Federal, sob pena de responder também pela sonegação fiscal.

Outro não tem sido os entendimentos jurisprudenciais, senão vejamos:

PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 1º, I, DA LEI Nº 8.137/90. SONEGAÇÃO FISCAL DE LUCRO ADVINDO DE ATIVIDADES ILÍCITAS. NON OLET".Segundo a orientação jurisprudencial firmada nesta Corte e no Pretório Excelso, é possível a tributação sobre rendimentos auferidos de atividade ilícita, seja de natureza civil ou penal; o pagamento de tributo não é uma sanção (
art. 4º do CTN - "que não constitui sanção por ato ilícito"), mas uma arrecadação decorrente de renda ou lucro percebidos, mesmo que obtidos de forma ilícita (STJ: HC 7.444/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ de 03.08.1998). A exoneração tributária dos resultados econômicos de fato criminoso antes de ser corolário do princípio da moralidade - constitui violação do princípio de isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética (STF: HC 77.530/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 18/09/1998). Ainda, de acordo com o art. 118 do Código Tributário Nacional a definição legal do fato gerador é interpretada com abstração da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos (STJ: RESP 182.563/RJ, 5ª Turma, Rel. Min José Arnaldo da Fonseca, DJU de 23/11/1998). Habeas corpus denegado[4].

DIREITO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 1º, I, DA LEI Nº 8.137-90. POSSIBILIDADE DE TRIBUTAÇÃO DE RENDIMENTOS ORIUNDOS DE PRÁTICA CRIMINOSA. ART,
118, I, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. PRINCÍPIO DO NON OLET".1. O Código Tributário Nacional foi recepcionado pela Constituição da República, inclusive com status de Lei Complementar. 2. Pelo princípio do non olet, a origem ilícita dos rendimentos auferidos pelo contribuinte não impede a tributação pelo Fisco, sendo certo que o art. 118, I, do Código Tributário Nacional é claro ao estabelecer que a definição legal do fato gerador é interpretada com abstração da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelo sujeito passivo. 3. A exoneração tributária dos resultados econômicos de fato criminoso, além de violar o princípio da moralidade, constitui violação ao princípio da isonomia. 4. Presentes os requisitos objetivos e subjetivos previstos no art. 44 do Código Penal, deve a pena privativa de liberdade ser substituída por restritiva de direito. 5. Recurso parcialmente provido[5].

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. RECEBIMENTO DE DENÚNCIA REJEITADA. ILEGITIMIDADE ATIVA DO PARQUET. INCIDÊNCIA FISCAL SOBRE ATIVIDADE ILÍCITA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA ISONOMIA FISCAL. SONEGAÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA E PERDA DE ARRECADAÇÃO DA FAZENDA ESTADUAL-CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS. 1 - O sistema tributário nacional é regido por princípios próprios que consistem em verdadeiros mandamentos nucleares desse sistema, dentre os quais a legalidade, a anterioridade, a irretroatividade, a segurança jurídica e a isonomia. 2 - A aplicação do princípio da isonomia no campo tributário consiste em garantir ao contribuinte uma tributação justa (
art. 150, II, da Constituição Federal), garantindo-se àqueles que se encontrem nas mesmas condições o mesmo tratamento jurídico. 3 - A impossibilidade de exação fiscal desigual consiste em corolário do princípio republicano, em conformidade com o art. 1 º da Constituição Federal. Atendidos os requisitos formais e materiais exigidos pelos artigos 41 e 43 do código de processo penal. 4 - Os resultados econômicos de uma atividade ilícita se sujeitam à exação tributária, com base nos princípios republicanos, da isonomia, da cláusula non olet" e da moralidade. 5 - Apesar de não haver sonegação de imposto sobre circulação de mercadorias na venda de "softwares piratas", há perda de arrecadação para a Fazenda Estadual, uma vez que os consumidores se atraem pelos baixos preços dos "cds piratas", e deixam de adquirir os produtos originais sobre os quais incide o referido imposto. 6 - Recurso provido[6].

SONEGAÇÃO FISCAL DE LUCRO ADVINDO DE ATIVIDADE CRIMINOSA. “NON OLET". Drogas: Tráfico de drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros vultosos subtraídos à contabilização regular das empresas e subtraídos à declaração de rendimentos: Caracterização, em tese, de crime de sonegação fiscal, a acarretar a competência da justiça federal e atrair pela conexão, o tráfico de entorpecentes: Irrelevância da origem ilícita, mesmo quando criminal, da renda subtraída à tributação. A exoneração tributária dos resultados econômicos de fato criminoso - Antes de ser corolário do princípio da moralidade - Constitui violação do princípio de isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética
[7].



[1] Ricardo Alexandre, Direito Tributário Esquematizado, 2ª Ed. rev., at. e ampl., Ed. Método, São Paulo, 2008, p. 37.

[2] Nos dizeres de Ricardo Alexandre, Direito Tributário Esquematizado, 2ª Ed. rev., at. e ampl., Ed. Método, São Paulo, 2008, p. 33, há tributos, contudo, que tem por finalidade precípua intervir numa situação social ou econômica. É a finalidade extrefiscal (como nos exemplos citados, no IOF, no IE, no ITR, etc).

[3] Ricardo Alexandre, Direito Tributário Esquematizado, 2ª Ed. rev., at. e ampl., Ed. Método, São Paulo, 2008, p. 38.

[4] STJ; HC 83.292; Proc. 2007/0114885-0; SP; Quinta Turma; Rel. Min. Felix Fischer; Julg. 28/11/2007; DJU 18/02/2008; Pág. 48)

[5] TRF 2ª R.; ACr 2003.51.01.505736-6; Rel. Des. Fed. Andre Fontes; Julg. 19/06/2008; DJU 28/07/2008; Pág. 95)
[6] TJRJ; RSEs 2005.051.00630; Primeira Câmara Criminal; Rel. Des. Roberto Guimarães; Julg. 30/05/2006)

[7] STF; HC 77530; RS; Primeira Turma; Rel. Min. Sepúlveda Pertence; Julg. 25/08/1998; DJU 18/09/1998; p. 00007)

4 comentários:

  1. Parabéns Doutora Sandes, o trabalho científico está bastante esclarecedor, e de grande profundidade. Abraço cordial.

    Roberto Pinto
    Fortaleza- CE
    E-mail: roberto.pdireito@hotmail.com

    ResponderExcluir
  2. Nesse mesmo sentido, a título de curiosidade, o Código Tributário Português é expresso:

    "O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) incide sobre os rendimentos obtidos, mesmo quando provenientes de actos ilícitos, no período de tributação, pelos respectivos sujeitos passivos, nos termos deste Código."

    Entretanto ainda assim não me convenço:

    Se um criminoso é obrigado a declarar sua renda auferida com o crime sob pena de incidir no crime de sonegação fiscal (tal qual Al Capone)não estaria ele sendo obrigado a produzir prova contra si mesmo?

    ResponderExcluir
  3. Caro Madson... A excencia da tributação das atividades ilicitas nao está em obrigar o delinguente a efetuar declaração da renda obtida com o crime.

    O real objetivo é que no momento de oferecer a denúncia, o criminoso seja enquadrado nos delitos diversos que tenha praticado e, ainda, enquadrado na sonegação fiscal por todos rendimentos que auferiu sem pagar os devidos impostos.

    Dessa forma parte do dinheiro adquirido pelo criminoso poderá ser resgatada para os cofres públicos, causando assim um desestímulo para a prática criminosa, possibilitando o concurso de crimes e tornando mais severa a aplicação das leis para com os que praticam crimes.

    Espero ter ajudado...

    Ass Jefferson Lustosa

    ResponderExcluir