quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Apontamentos Criminais sobre Abate Clandestino. Parte V.

O abate clandestino de animais chegou a ser uma das condutas que mais vem reclamando a atenção dos órgãos de execução do Ministério Público. Como bem explica o Professor e Promotor de Justiça Gustavo Senna Miranda[1], referida conduta tem reflexos em diversas áreas de atuação do Ministério Público, destacando-se a saúde (na medida em que coloca em risco a saúde da população, já que oferece mercadoria inapropriada para o consumo, podendo provocar sérias doenças) o meio ambiente (na medida em que pode acarretar poluição ambiental com o depósito irregular da mercadoria ou com dispensa de dejetos em manancial etc.), o consumidor (eis que viola direitos básicos da relação de consumo, atingindo direito difuso da coletividade), dentre outros.

Não por outro sentido que os Promotores de Justiça Dirigentes respectivamente dos Centros de Apoio à Saúde, do Meio Ambiente, do Consumidor e Criminal (que fornecem suporte jurídico para os órgãos de execução do Ministério Público, principalmente para as Promotorias do interior do Estado), estão envidando esforços para coibir tal prática, infelizmente com certa aceitação, por falta de informação, da população, porém, de efeitos deletérios para a coletividade, merecendo, portanto, atuação eficaz do Ministério Público, preventiva e repressivamente.

Como destacado, o abate clandestino de animais para consumo de carnes é uma questão grave que tem sido objeto da preocupação das diversas promotorias de justiça. O risco de transmissão de zoonoses é bastante sério, o que tem obrigado os órgãos de execução do Ministério Público a fiscalizarem as condições dos matadouros municipais, não raramente requerendo judicialmente sua interdição, como também a coibir o abate clandestino.

O correto enquadramento da conduta não é matéria pacífica, havendo posições variadas tanto na doutrina como na jurisprudência, conquanto o material disponível seja escasso. Resumidamente, temos as seguintes possibilidades de enquadramento:

Inicialmente vislumbra-se a possibilidade de tipificação da referida conduta no crime intitulado “Infração de medida sanitária preventiva”, previsto no art.268 do Código Penal, in verbis:

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Assim, nota-se pela redação acima que, em tese, é possível o enquadramento da conduta do agente responsável pelo abate nas penas do crime acima referido. Nesse sentido, aliás, encontramos o seguinte julgado:

Pratica crime aquele que abate gado, destinado a consumo público, em seu quintal ou qualquer local que não matadouros, em zona urbana, desrespeitando resoluções municipais ou estaduais
[2].

Ainda encontramos na jurisprudência o seguinte acórdão, que, pode ser adequado ao caso em comento:

CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA - Infração de medida sanitária preventiva - Abate clandestino de gado vacum - Carne não destinada, porém, à população, mas a familiares e convidados, para churrasco oferecido pelos acusados - Inexistência de dolo - Absolvição decretada - Inteligência do art. 268 do CP de 1940. Se a carne obtida através de abate clandestino de gado vacum era destinada não ao consumo público, mas a ser servida, em churrasco, a familiares e convidados dos acusados, não se configura a infração do art. 268 do CP de 1940, por falta de dolo específico
[3].

Portanto, da análise do julgado acima, a contrario senso, mais uma vez se chega à conclusão de que será possível o enquadramento no artigo citado se o agente praticar abate clandestino de gado, com o objetivo de destinar a mercadoria para consumo da população, representando, assim, um perigo para um número indeterminado de pessoas, sendo, portanto, modalidade de crime de perigo abstrato.

Sendo enquadrado no citado artigo 268 do Código Penal, é importante lembrar que, pela pena máxima cominada em abstrato (1 ano), a infração é de menor potencial ofensivo, sendo, portanto, da competência dos Juizados Especiais Criminais. Assim, na transação penal (art. 76 da Lei nº 9.099/1995
[4]) é recomendável, como proposta de pena alternativa, alguma pena adequada ao crime.

Outras disposições legais previstas no Código Penal Brasileiro podem ser eventualmente utilizadas para tipificar tal fato delituoso, dependendo do caso concreto. Assim, por exemplo, lembramos os artigos 259 (“Difundir doença ou praga que possa causar dano a floresta, plantação ou animais de utilidade econômica”) e 278 (“Fabricar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender ou, de qualquer forma, entregar a consumo coisa ou substância nociva à saúde, ainda que não destinada à alimentação ou a fim medicinal”). Porém, a tipificação nos delitos citados encontra maior dificuldade prática.

Também não pode ser olvidada a Lei nº 9.605/98 (que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente), podendo, eventualmente, a conduta ser enquadrada em algum tipo específico da lei ambiental, no que se refere a crime contra a fauna ou, até mesmo, crime de poluição. Malgrado isso, não encontramos referências na jurisprudência, o que não impede, observe, que se utilize da presente lei caso se consiga um perfeito enquadramento de acordo com ao fato praticado.

Finalmente, destacamos ser forte o entendimento jurisprudencial de se enquadrar a conduta como crime contra a relação de consumo, notadamente no que diz respeito às condutas de depósito para a venda ou exposição de carne clandestina.

Com efeito, corrente o posicionamento que admite a possibilidade de seu enquadramento no art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/1990, pois é inegável que referidas mercadorias, por terem o processo de abate e distribuição em desacordo com as normas regulamentares, se apresentam impróprias para o consumo, violando, portanto, bem jurídico da coletividade de consumidores, na medida em que tal conduta atinge diretamente os interesses econômicos ou sociais do consumidor e, indiretamente, colocam em risco a vida, a saúde, o patrimônio e o mercado.

Por oportuno, para um melhor entendimento sobre o tema, pedimos vênia para transcrever o artigo citado:

Art. 7º. Constitui crime contra as relações de consumo:
I – (...)
IX – vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo.
Pena – detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.

Comentado o referido inciso, leciona Luis Regis Prado:

A ação típica prevista no inciso IX consiste em vender (consubstanciada na ação de comercializar, ou seja, transferir propriedade para outra pessoa, mediante pagamento), ter em depósito para vender (que significa guardar, conservar, deter, implicando posse ou detenção com o fim posterior de colocar à venda a matéria-prima ou mercadoria imprópria ao consumo) ou expor à venda (que expressa pôr à vista, mostrar, apresentar, oferecer, exibir para a venda) ou, de qualquer forma, entregar (designa a translação de uma mercadoria ou matéria-prima para cumprimento de uma obrigação contratual) matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo
[5].

Importante destacar que o tipo em questão configura norma penal em branco
[6], uma vez que matéria-prima ou mercadoria consideradas impróprias para o consumo encontram-se mencionadas na Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), em seu art. 18, § 6º:

Art. 18. (...)
§ 6º - São impróprios ao uso e consumo:
I – Os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos;
II – Os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação;
III – Os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam.

Como destacado, é forte a posição jurisprudencial no sentido de enquadrar a conduta no tipo acima referido. Assim, colacionamos alguns julgados sobre a matéria relacionada ao abate clandestino, conforme segue adiante, em que se verifica que até mesmo a conduta de abate clandestino de animais pode, em tese, configurar o crime em comento, senão vejamos:

Crime contra as relações de consumo. Agente que mantém em depósito carne inadequada ao consumo. Configuração. Incorre nas penas do art. 7º, IX, da Lei 8.137/90 o agente que, mantém em depósito de açougue carne inapropriada para o consumo, sendo irrelevante o argumento de que este separaria a carne avariada, não oferecendo-a aos consumidores, pois a conduta típica é ter em depósito
[7].
Incorre nas sanções do art. 7º, IX, da Lei 8.137/90, o agente que efetua abate clandestino de gado e de suíno em local inadequado e sem as mínimas condições de higiene e segurança, transportando as carnes, em seguida, para seu estabelecimento comercial, em veículo próprio, sendo irrelevante o de não ter descarregado o produto por ter sido pilhado no desembarque, pois visível sua intenção de comercialização
[8].

Exposição à venda de produto avariado. Transferência da responsabilidade do agente ao fabricante ou concedente do produto. Impossibilidade. No tocante ao crime previsto no art. 7º, IX, da Lei 8.137/90, a responsabilidade do agente não pode ser transferida ao fabricante ou concedente do produto, pois o núcleo do tipo descreve a mera ação física de expor à venda mercadorias em condições impróprias ao consumo, conduta esta que não pode ser atribuída a terceiros[9].

Crime contra as relações de consumo. Responsável por setor de supermercado que, por negligenciar na inspeção dos produtos a seu cargo, contribui à exposição à venda de mercadorias em condições impróprias para a alimentação. Configuração. Comete crime contra as relações de consumo - Lei 8.137/90, de 27.12.90, art. 7º, IX e seu parágrafo único - o responsável por setor de supermercado que, por negligenciar na inspeção dos produtos a seu cargo, contribuiu na exposição à venda de mercadoria em condições impróprias para a alimentação
[10].

Crimes contra a ordem econômica e as relações de consumo. Exposição à venda de mercadoria em condições impróprias para o consumo. Caracterização. Ocorrência de nocividade a saúde. Desnecessidade. O delito do art. 7º, IX, da Lei 8.137/90, não reclama para a integração de sua figura típica que a mercadoria vendida, exposta à venda ou entregue, seja efetivamente nociva à saúde, bastando que se revista de 'condições impróprias ao consumo' não se confundindo com o antigo tipo 'substância avariada', revogado por esta mesma lei
[11].

Crimes contra a ordem econômica e as relações de consumo. Agente que, negligentemente, expõe à venda produto impróprio para o consumo. Configuração. Para a configuração da modalidade culposa do crime previsto no art. 7º, IX, da Lei 8.137/90, basta a negligência do réu, no sentido de expor à venda produto impróprio para o consumo, sendo desnecessária, portanto, a demonstração de dolo na conduta do agente
[12].

Outrossim, importante observar que para a caracterização do crime previsto no inc. IX do art. 7º, da Lei nº 8.317/1990, não há que se falar na necessidade de laudo pericial para comprovação de que a mercadoria é imprópria para consumo, pois estamos diante de um crime de perigo abstrato
[13], sendo essa, aliás, posição já adotada pelo Superior Tribunal de Justiça:

Crime contra as relações de consumo – Abatedouro clandestino – Crime formal que se concretiza com a colocação em risco da saúde de eventual consumidor da mercadoria – Desnecessidade de laudo pericial da comprovação da impropriedade para consumo, por ser delito de perigo abstrato – Inteligência do art. 7º, IX, da Lei 8.137/1990. Ementa Oficial: O tipo do inciso IX do art. 7º da Lei 8.137/1990 trata de crime formal, bastando, para sua concretização, que se coloque em risco a saúde de eventual consumidor da mercadoria. Cuidando-se de crime de perigo abstrato, desnecessária se faz a constatação, via laudo pericial, da impropriedade do produto para consumo
[14].

No mesmo sentido há entendimento dos Tribunais de Justiças Estaduais, senão vejamos:

Crimes contra as relações de consumo – Depósito de carne manuseada inadequadamente em local sem higiene – Desnecessidade da realização de perícia – Existência de atestado de fiscais sanitários relatando a improbidade para o consumo – Delito caracterizado – Inteligência do art. 7º, IX, da Lei 8.137/1990. Ementa Oficial: Caracteriza-se o crime expresso no art. 7º, IX, da Lei 8.137/1990 com simples depósito de carne manuseada, inadequadamente, em local sem higiene, sendo desnecessária a realização de perícia, se os fiscais sanitários atestam a improbidade para o consumo
[15].

Crime contra as relações de consumo – Caracterização – Ausência de inspeção e selo de qualidade da carne em estabelecimento comercial fiscalizado – Delito formal de perigo abstrato ou presumido – Consumação que se dá com a constatação pela autoridade sanitária competente da improbidade do uso – Inteligência do art. 7º, IX, da Lei 8.137/1990. Ementa Oficial: A conduta descrita no art. 7º, IX, da Lei 8.137/1990 é formal, de perigo abstrato ou presumido, bastando para sua consumação apenas a constatação, pela autoridade competente, a improbidade do uso por ausência de inspeção e selo de qualidade da mercadoria (carne) em estabelecimento comercial fiscalizado
[16].

Assim, é inquestionável que o Ministério Público também pode se valer do direito penal para coibir a nefasta prática, que tanto mau causa á coletividade, que é o abate clandestino de animais destinado ao consumo.

Das tipificações possíveis a que encontra maior número de incidência e, portanto, de aceitação pelos tribunais, é a do art. 7º, inc. IX, da Lei nº 8.137/1990, destacando, inclusive, que referido delito possui pena máxima superior a dois anos, estando fora da competência dos Juizados Especiais Criminais, não sendo possível, também, pela pena mínima cominada (dois anos), nem mesmo a suspensão condicional do processo.

Portanto, pela gravidade de sua pena, poderá, em tese, ser mais eficaz para coibir a referida prática, merecendo reflexão por parte dos órgãos de execução do Ministério Público.

[1] APONTAMENTOS CRIMINAIS SOBRE ABATE CLANDESTINO - Centro de Apoio Operacional Criminal, Dirigente: Gustavo Senna Miranda – Promotor de Justiça, Ministério Público do Estado do Espírito Santo - Rua Humberto Martins de Paula - Ed. Promotor Edson Machado, nº 350,Enseada do Suá - Vitória - ES

[2] RT 269/518-519; Ap. N. 132.974 do TACrSP, in Justitia 26/297-8

[3] Ap. 338.977 - Lorena - 5ª. C. - j. 9.5.84 - rel. Juiz Edmeu Carmesini - v. u. (RT 597/328)

[4] Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. § 1º Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade. § 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado: I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva; II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo; III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida. § 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz. § 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos. § 5º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art. 82 desta Lei. § 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.

[5] PRADO, Luis Regis. Direito Penal do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1ª ed., 2005.

[6] É aquela cujo preceito primário carece de complemento de outra norma, ou seja, aquela em que a definição da conduta criminosa apenas é possível com a utilização de outra norma, que especifique o seu conteúdo. JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Elementos do Direito – Direito Penal, Ed. Premier, 6ª Ed,. São Paulo, 2007, p. 42.

[7] TACrimSP, Ap. 836.979, Rel. Walter Guilherme

[8] TACrimSP, Ap. 734.249, Rel. José Urban

[9] TACrimSP, Ap. 904.319, Rel. Aroldo Viotti

[10] TACrimSP, Ap. 842.465, Rel. Haroldo Luz

[11] TACrimSP, Ap. 898.585, Voto vencido: Aroldo Viotti

[12] TACrimSP, Ap. 818.071, Rel. Samuel Júnior

[13] Crime de perigo abstrato é, nas palavras de Claus ROXIN (27), "aqueles em que se castiga a conduta tipicamente perigosa como tal, sem que no caso concreto tenha ocorrer um resultado de exposição a perigo". Fonte: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5722

[14] STJ – 5ª T. – Resp 235.271 – PR – rel. Min. Gilson Dipp – j. 02.05.2002 – RT 807/582

[15] TACrimSP – 12ª Cam. – Ap 1.339.281 – 5 – rel. Juiz Luiz Ganzerla – j. 28.07.2003 – RT 818/597

[16] TAPR – 2ª Cam. – Ap. 0177571-5 – rel. Des. Rafael A. Cassetari – j. 13.06;2002 – RT 811/709

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