sábado, 2 de julho de 2011

4.3 NATUREZA PENAL DAS MEDIDAS PROTETIVAS

A Lei 10.886/2004 acrescentou dois novos parágrafos ao artigo 129 do Código Penal. O primeiro é § 9°, cujo nomen juris é violência doméstica. Trata-se de figura típica qualificada, isso porque o legislador, nos casos de lesão praticada “contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge, companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”, fixou a pena, elevando-a de seis meses a um ano.

E o segundo é o § 10, que se afigura causa de aumento de pena, isso porque prevê que “nos casos previstos nos §§ 1° a 3° deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9° este artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço)”. Note-se que o legislador, ao estabelecer a figura qualificada e a causa de aumento de pena, levou em conta a violência doméstica praticada entre integrantes de uma mesma vida familiar, havendo ou não laços de parentesco, ou seja, não tratou apenas de violência doméstica e familiar contra a mulher [1]. Nesse mesmo sentido, CESAR ROBERTO BITENCOURT [2].

O artigo 44 da Lei Maria da Penha promoveu alteração no artigo 129 do Código Penal no tocante a sua pena (preceito secundário), bem como incluiu o § 11, no mesmo artigo, que passa, doravante, a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

[...]

§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.

[...]

§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.

A Lei Maria da Penha, em seu preâmbulo e em seu artigo 1º, aponta textualmente o âmbito de incidência, no qual diz que cria mecanismo para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, estabelecendo medidas de assistência e proteção as mulheres nessas situações. Diante disso, a técnica recomenda que as disposições nela constantes tenham emprego específico a norteá-la. Ocorre que o artigo 44, como já mencionado, manteve o preceito primário intacto (que foi acrescido pela Lei 10.886/2004 e não pela Lei 11.340/2006) e revogou o preceito secundário do artigo 129, § 9°, do Código Penal (acima informado), tendo diminuído a pena mínima (de seis meses para três meses) e elevado à pena máxima (de um a três anos). Embora a pena mínima tenha diminuído, o que induz a crer que seria norma benéfica, tal não ocorre porque a pena máxima foi de um para três anos, e o parâmetro hoje utilizado para uma série de benefícios, como compreender o delito como infração de menor potencial ofensivo ou não, por exemplo, é a pena máxima abstrata [3].

Ocorre, todavia, que o preceito primário mantido não diz respeito tão somente à violência doméstica contra a mulher, tutelando lesões praticadas contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou seja, esse preceito primário estende sua proteção a outras pessoas não vulneráveis, que estejam no mesmo emprego de relações familiares e domésticas, e que não estão no âmbito de incidência da Lei Maria da Penha [4].

No mesmo sentido, BITENCOURT [5]:

[...] “a dita “violência doméstica” pode ser praticada contra outros sujeitos passivos, desde que se prevaleça das relações domésticas, de coabitação e de hospitalidade.

A locução “ou ainda prevalecendo-se” quer significar que a mesma conduta proibida pode tipificar-se quando for praticada contra “outros sujeitos”, além daqueles expressamente mencionados, apenas com o acréscimo da elementar “prevalecendo-se das relações” mencionadas”.

CUNHA e PINTO [6] aduzem que a qualificadora para a pena imposta, se aplica independentemente do sexo da vítima.

No mesmo sentido, DIAS [7] alega que:

Ainda que a Lei Maria da Penha tenha vindo em benefício da mulher, o delito de lesão corporal qualificado pela violência doméstica aplica-se independentemente do sexo do ofendido, podendo ter como vítima um homem ou uma mulher. O Código Penal, da forma como está redigido, não faz distinção quanto a identidade de gênero da vítima. Basta o fato de a agressão decorrer do vínculo familiar entretido entre agressor e vítima para configurar-se o delito.

Dessa forma, configurada violência doméstica (artigo 129, § 9º), quando a vítima é um homem, ainda que não se aplique a Lei Maria da Penha, o agressor não faz juz a nenhuma benesse da Lei dos Juizados Especiais em face da pena máxima atribuída ao delito que é de três anos [8], da mesma forma CUNHA e PINTO [9].

Conclui CUNHA e PINTO [10] que:

[..] em face do dispositivo em exame, temos, por exemplo, que num crime de lesão corporal leve contra um irmão, o agente não terá direito a transação penal, devendo, nesse caso, ser instaurado o respectivo inquérito policial, já que não se trata de infração de menor potencial ofensivo, em virtude da pena máxima prevista de três anos. Não se ignora, é verdade, a intenção da lei. É a mulher seu principal foco. Foi a mulher, tida por hipossuficiente, que pretendeu o legislador especial proteção. Mas isso não autoriza a conclusão de que apenas sendo a ofendida do sexo feminino é que terá incidência da agravante. Assim, sendo leve a lesão perpetrada pelo agressor e sendo ele ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, tendo praticado o crime prevalecendo-se das relações domésticas, de coabitação e de hospitalidade, não mais fará juz a transação penal, em vista da pena máxima cominada ao delito.

O argumento de que a proteção da lei se voltou, quase que exclusivamente, em prol da mulher e, por isso, a qualificadora não teria incidência sendo o homem vítima, não aproveita.

[...] Há, porém, que se fazer uma distinção: sendo a vítima mulher, o agente não merecerá a transação penal e tampouco nenhum dos outros benefícios da Le 9.099/95, como a composição civil dos danos ou a suspensão condicional do processo, em vista do disposto no artigo 41 da lei em exame. Já se o ofendido é homem (e sendo o agressor ascendente, descendente etc.), o agressor não terá direito à transação penal, em vista da pena máxima prevista, agora, para o crime de lesões corporais leves, mas poderá receber os demais favores típicos do JECrim acima mencionados.

Outro ponto importante e que justifica a aplicação analógica das medidas protetivas da Lei Maria da Penha em favor do homem é que a Lei 9.099/1995, mais especificamente em seu artigo 69, parágrafo único, parte final, diz que “em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima”, traz menos prerrogativas para a vítima (homem) em relação a sua segurança, integridade física, psicológica e etc., do que as medidas de proteção da Lei em comento. Motivo pelo qual, diante do caso concreto, essa Lei torna-se mais eficaz.

Dessa forma, convém destacar que as tipificações trazidas no § 9º e § 10 do artigo 129 do Código Penal não foram criadas e elaboradas pela Lei Maria da Penha, que se limitou a alterar a respectiva sanção penal da disposição do § 9º que já existia desde 2004, com a Lei 10.886, da mesma forma com a inclusão do § 10 pela mesma Lei.

Portanto, a Lei manteve por sua vez, intacta o preceito primário, alterando somente o preceito secundário do referido artigo 129, § 9º, bem como acrescentou o § 11, no mesmo artigo, conforme se citou acima.

O artigo 43 da Lei Maria da Penha também modificou a redação da alínea f do artigo 61 do Código Penal que passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 61. São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:

[...]

II – ter o agente cometido o crime:

[...]

f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica;

Vê-se, pois, que o legislador ampliou a textura da alínea f, agregando, como circunstancia agravadora, ter o agente cometido o crime “com violência contra a mulher, na forma da lei específica” [11].

Outra alteração trazida pela Lei Maria da Penha (artigo 42) foi o acréscimo do inciso III ao artigo 313 do Código de Processo Penal, que passou a ter a seguinte redação:

Art. 313. Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventivanos crimes dolosos:

[...]

IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

Nesse artigo, permite-se que qualquer que seja o crime (doloso), ainda que apenado com detenção (uma ameaça, por exemplo), seja decretada a prisão preventiva, bastando que estejam presentes o fumus comissi delict (indícios da autoria e prova da existência do crime – artigo 312 do Código de Processo Penal) e que a prisão seja necessária para garantir a execução das medidas protetivas de urgência [12].

Aliás, no artigo 20 da Lei Maria da Penha já se prevê que:

Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.

Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

Também foi acrescido pelo artigo 45 da Lei o parágrafo único no artigo 152 da Lei 7.210/1984 (Lei de Execuções Penais), que passa a vigorar da seguinte forma:

Art. 152. Poderão ser ministrados ao condenado, durante o tempo de permanência, cursos e palestras, ou atribuídas atividades educativas.

Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.

Outro artigo importante da Lei é o artigo 12, que traz os procedimentos que deverá a autoridade policial adotar:

Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:

I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;

II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;

III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;

IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;

V - ouvir o agressor e as testemunhas;

VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;

VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.

§ 1o O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter:

I - qualificação da ofendida e do agressor;

II - nome e idade dos dependentes;

III - descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida.

§ 2o A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1o o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida.

§ 3o Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde.

Existe uma medida protetiva cautelar administrativo-penal no artigo 22, inciso I, inserido dentro da Seção II, que trata “Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor”, dispõe que o juiz, constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da Lei Maria da Penha, poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, dentre outras medidas protetivas de urgência, a “suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003” [13].

Trata-se de medida cautelar, de caráter administrativo penal, exigindo, para sua aplicação, a presença dos requisitos sempre necessários a tanto, que são: fumus boni iuris e periculum in mora. No tocante ao fumis boni iuris (justa causa), o expediente encaminhado pela Autoridade Policial (nos termos do artigo 12, da Lei Maria da Penha) deverá conter prova da existência de prática de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei, contra a mulher, e indícios suficientes de autoria. E quanto ao periculum in mora, devem existir elementos que traduzam necessidade e urgência da medida, ou seja, apontamentos de que a não aplicação da medida coloque a mulher em risco [14].

OLIVEIRA diz que o artigo 22, inciso I, pode ser entendido tanto como uma cautelar de natureza cível quanto criminal e que, por se tratar de matéria relativa à violência física (agressão) ou moral (ameaça), a medida se ajusta mais no ambiente criminal [15].

Outro artigo importante é o artigo 16 da Lei Maria da Penha que dispõe:

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Diante da vedação trazida pelo artigo 16 da Lei, parte da doutrina, jurisprudências, juntamente com o Superior Tribunal de Justiça, entende que o delito de lesão corporal de natureza leve e culposa, praticadas no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, perseguido mediante ação penal pública condicionada a representação (por força do artigo 88 da Lei 9.099/1995, que diz que dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas), a ação penal será pública incondicionada.

O trabalho adota o posicionamento de que independe de representação da vítima a propositura de ação penal, da mesma forma que se posicionou a Ministra Jane Silva do Superior Tribunal de Justiça, em Acórdão proferido no Recurso Especial interposto pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios [16]:

[...]

A fim de demonstrar que se encontram satisfeitos os requisitos do artigo 41 e 43 do Código de Processo Penal, faz-se necessário um breve relato das alterações legislativas que me conduziram ao entendimento segundo o qual, hoje, em se tratando de lesões corporais leves e culposas, praticadas no âmbito familiar contra mulher, a ação é, necessariamente, pública incondicionada, vejamos:

[...]

A segunda teoria, a qual me filio, preconiza que com o advento da Lei 11.340/2006 o legislador quis propor mudanças que efetivamente pudessem contribuir para fazer cessar, ou, ao menos reduzir drasticamente, a triste violência que assola muitos dos lares brasileiros, uma violência velada que corrói as bases da sociedade pouco a pouco.

[...]

O interesse maior é da sociedade; é a proteção de mulheres que ficam subjugadas pelo “poder” econômico do parceiro, de idosas e, sobretudo, das menores que, via de regra, são vítimas, ainda que de violência mental, desse tipo de situação. Por tal razão, a escolha não pertence à vítima, mas ao Ministério Público, órgão essencial à Justiça.

Acaso se proceda de forma diversa, estar-se-á definitivamente retirando qualquer eficácia que o legislador pretendeu atribuir à Lei 11.340/2006. Qual será, então, a finalidade da “Lei Maria da Penha” se se retirar dela todo o seu potencial de atuação contra os agressores?

No mesmo sentido do posicionamento da Ministra, têm-se GOMES [17]:

Nesses crime, portanto, cometidos pelo marido contra a mulher, pelo filho contra a mãe, pelo empregador contra a empregada doméstica etc., não se pode mais falar em representação, isto é, a ação penal transformou-se em pública incondicionada (o que conduz a instauração de inquérito policial, denúncia, devido processo, contraditório, provas, sentença, duplo grau de jurisdição etc.). Esse ponto, sendo desfavorável ao acusado não pode retroagir (isto é: não alcança os crimes ocorridos antes do dia 22.09.06).

NUCCI [18] diz que:

Se alguma vantagem houve, está concentrada na ação penal, que passa a ser pública incondicionada, em nossa visão, retornando para a iniciativa do Ministério Público, sem depender da representação. Isto porque o art. 88 da Lei 9.099/95 preceitua que dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves (prevista no caput do art. 129) e lesões culposas (constante do § 6º do mesmo artigo). Ora, a violência doméstica, embora lesão corporal, cuja descrição típica advém do caput, é forma qualificada da lesão, logo, não mais depende de representação da vítima. A mudança foi tímida e de pouca utilidade.

E BASTOS [19], no mesmo sentido:

[...] não se aplicam, portanto, os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher. Deste modo, em se configurando a violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer que seja o crime e sua pena, não cabe transação penal nem suspensão condicional do processo nem composição civil dos danos extintiva de punibilidade, não se lavra termo circunstanciado (em caso de prisão em flagrante, deve ser lavrado auto de prisão em flagrante e, se for o caso, arbitrada fiança), deve ser instaurado inquérito policial (com a medida paralela prevista no art. 12, III, e §§ 1º e 2º da Lei nº 11.340/06), a denúncia deverá vir por escrito, o procedimento será o previsto no Código de Processo Penal [...]

Continua ainda a Ministra [20] que:

[...]

Dessa forma, entendo que em nome da proteção à família, preconizada como essencial pela Constituição da República e, frente ao dispositivo da Lei 11.340/2006 que afasta expressamente a Lei 9.099/1995, os institutos despenalizadores e as medidas mais benéficas dessa última, não se aplicam à violência doméstica, independendo, portanto, de representação da vítima a propositura da ação penal pelo Ministério Público nos casos de lesão corporal leve ou culposa.

Ademais, até mesmo a nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima.

[...]

Interessante relacionar também o artigo 16 em comento com o artigo 226, § 8º da Constituição da República de 1988, onde o bem jurídico protegido pelo mencionado artigo constitucional é a família.

Nesse sentido, posiciona-se a Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Espírito Santo MARIELA SANTOS SIQUEIRA [21]:

[...] Não há dúvida nesse ponto, e, como aquele ente (família) não se cinge apenas a figura da mulher, na cabe a vítima, por ser um direito que não lhe pertence, malgrado ter sido o sujeito passivo imediato, decidir o rumo da ação penal.

Tratando-se, pois, de direito indisponível à proteção da família, a ação penal, sem dúvida, deverá ser pública incondicionada, com bem o fez o legislador de forma expressa.

Assim, quando um pai de família agride sua companheira, esta é a vítima direta das agressões físicas, e necessita, sem dúvida, de proteção. Todavia, aquela agressão física, se desmembrará da vítima imediata, e alcançará todos os entes que compõe a familia principalmente os filho, gerando nestes, uma nova modalidade de agressão, qual seja, a agressão psicológica, que se encontra expressamente prevista na Lei Maria da Penha.

Nesse passo, não cabe a agredida dispor de um direito que não lhe pertence, mesmo porque, outras vítimas poderão sofrer pela sua inércia. [...].

Nesse sentido, ADA PELLEGRINI GRINOVER [22] aduz que:

[...] a transformação da ação penal pública incondicionada em ação penal pública condicionada significa despenalização. Sem retirar o caráter ilícito do fato, isto é, sem descriminalizar, passa o ordenamento jurídico a dificultar a aplicação da pena de prisão. De duas formas isso é possível: a) transformando-se a ação penal pública em privada; b) ou transformando-se a ação pública incondicionada em condicionada. Sob a inspiração da mínima intervenção penal, uma dessas vias despenalizadoras (a segunda) foi acolhida pelo artigo 88 da Lei 9.099/95.

O artigo 17 da Lei Maria da Penha, vedou a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. A intenção é ver o agressor cumprir pena de caráter pessoal, isto é, pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos (prestação de serviços a comunidade, limitação de fim de semana ou interdição temporária de direitos), mais adequada ao tipo de crime (e autor) em análise [23].

JANAÍNA PASCOAL [24] diz que “tão humilhante como buscar a punição de seu agressor e vê-lo sair vitorioso doando uma única cesta básica, muita vez comprada pela própria vítima, é ver o Estado desconsiderar a sua vontade”.

BARBOSA e CAVALCANTI [25] aduzem que:

Ressalte-se também a banalização da violência doméstica pela lei nº. 9.099/95, que gerava um sentimento de impunidade, pois o tratamento dado por este diploma legal à repressão à violência doméstica contra a mulher se mostrava insuficiente para solucionar os problemas advindos das relações familiares.

A violência doméstica era tratada como um crime de menor potencial ofensivo, embora atingisse toda uma estrutura familiar, prejudicando não só a mulher, como os filhos do casal. Para se ter uma idéia, apenas 2% dos agressores eram condenados. A maioria dos processos eram, portanto, extintos ou a condenação consistia em pagamento de cestas básicas pelo agressor, sendo a dignidade e integridade da mulher mensuradas em quantidade de cestas de alimentos, que obviamente seriam revertidas quase sempre ao próprio agressor. Afinal, o casal, na maioria das vezes, não se separava.

Assim, o artigo 41 da Lei Maria da Penha, diz:

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Nesse sentido se posiciona PAULO HENRIQUE ARANDA FULLER [26], para quem “a proibição da aplicação dos institutos da Lei 9.099/1995 (notadamente a transação penal e a suspensão condicional do processo) se restringe aos crimes praticados com violência doméstica ou familiar contra a mulher e, por isso, não alcança quaisquer contravenções penais, ainda que sujeitas ao regime jurídico da Lei 11.340/2006”.

FONSECA e PACÍFICO [27] ressaltam que:

Como pode ser observado, são medidas como essas que fazem a vítima se sentir protegida pelo Estado, e o agressor receoso em cometer o delito. O agressor percebe, portanto, que o pagamento de uma cesta básica não vai mais pagar a sua dívida com a justiça.

Aduz ainda a Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Espírito Santo [28] que:

Ao afastar-se a aplicação das disposições despenalizadoras previstas na Lei 9.099/95, como a composição dos danos cíveis, transação penal, suspensão condicional do processo, proibição de pagamento de cestas básicas, alterando penas, criando novas majorantes e agravantes, e, engendrando novas possibilidades de prisão preventiva, denota-se que o espírito da Lei Maria da Penha fora o de evitar obstáculos à punição do agressor, possibilitando, dessa forma, a aplicação de severas sanções penais.

Comentou-se também em relação ao artigo 16 da Lei Maria da Penha, em que a ação penal, nos crimes praticados contra a mulher será pública incondicionada, como prega parte da doutrina e jurisprudência. Esse artigo interpretado na sua forma literal, quando diz que a ação penal pública será condicionada a representação, é mais uma forma indireta de se impedir o exercício do jus puniendi do Estado, da mesma forma se fosse possível a aplicação de todos os institutos despenalizadores da Lei 9.099/1995. Não deixando, esse artigo, de possuir a mesma natureza jurídica de um instituto despenalizador, quando faculta a possibilidade da vítima de violência em suas modalidades e em seus âmbitos de representar ou não contra o seu agressor.

Por isso, adota-se o posicionamento de que se trata de uma ação penal pública incondicionada.

MOREIRA [29] diz que quando a infração penal praticada for um crime de menor potencial ofensivo, devem ser aplicadas todas as medidas despenalizadoras previstas na Lei 9.099/95, quais sejam:

- composição civil dos danos;

- transação penal;

- suspensão condicional do processo.

Dentre as medidas despenalizadoras previstas na Lei 9.099/1995, tem-se a medida “descarceirizadora” do artigo 69 da mesma Lei, que trata da lavratura de termo circunstanciado e não lavratura do auto de prisão em flagrante, caso o autor do fato comprometa-se a comparecer ao Juizado Especial Criminal [30].

Vê-se que com a entrada da Lei Maria da Penha em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, buscou-se a adoção de um regime penal mais gravoso, diante das vedações trazidas pela Lei em seus artigos 17 e 41.

A não aplicação da Lei 9.099/1995, impossibilitou a substituição de penas de caráter pessoal (como, por exemplo, de pena privativa de liberdade e algumas penas restritivas de direitos) por pagamento de cesta básica, outras de prestação pecuniária e multa, caso tenha o agressor praticado delitos contra uma mulher, em relações domésticas, familiares e de relacionamento íntimo.

Dessa forma, buscou a Lei Maria da Penha punir de forma efetiva o agressor, afastando no caso de violência doméstica, familiar e de relacionamento íntimo contra a mulher todos os institutos despenalizadores já mencionados, bem como o instituto “descarceirizador”.


[1] SOUZA, Luiz Antonio. KUMPEL. Vitor Frederico. Op. Cit. p. 121.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. nota 6.
[3] SOUZA, Luiz Antonio. KUMPEL. Vitor Frederico. Op. Cit. p. 122.
[4] Idem. p. 122/123.
[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit.
[6] CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Op. Cit. p. 219.
[7] DIAS, Maria Berenice. Op. Cit. p. 100/101.
[8] DIAS, Maria Berenice. Op. Cit. p. 101.
[9] CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Op. Cit. p. 143.
[10] Idem. p. 220/221.
[11] SOUZA, Luiz Antonio. KUMPEL. Vitor Frederico. Op. Cit. p. 123/124.
[12] MOREIRA, Romulo de Andrade. A Lei Maria da Penha e suas inconstitucionalidades. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10291. Acesso em: 05 de fev. de 2009.
[13] SOUZA, Luiz Antonio. KUMPEL. Vitor Frederico. Op. Cit. p. 126.
[14] SOUZA, Luiz Antonio. KUMPEL. Vitor Frederico. Op. Cit. p. 126.
[15] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. Cit. p. 600.
[16] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RECURSO ESPECIAL nº 1050.276 – DF (2008/0086133-2). RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. RECORRIDO: ADALBERTO PEREIRA DA SILVA. DATA DA PUBLICAÇÃO: 24/11/2008. Disponível em: http://www.stj.gov.br/. Acesso em: 03 de nov. de 2009.
[17] GOMES, Luiz Flávio. BIANCHINI, Alice. Lei da Violência Contra a Mulher: Renúncia a representação da vítima. Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20060911143243449. Acesso em: 03 de nov. de 2009.
[18] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 585/586.
[19] BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://www.jusnavigandi.com.br. Acesso em: 03 de nov. de 2009.
[20] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RECURSO ESPECIAL nº 1050.276 – DF (2008/0086133-2). Op. Cit.
[21] ESPÍRITO SANTO. MINISTÉRIO PÚBLICO. HABEAS CORPUS nº 100080031196. MP nº 43484/2008. PACIENTE: CLAUDIANO SANTOS DA SILVA. AUTORIDADE COATORA: JUIZ DE DIREITO DA 11ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DE VITÓRIA. PARECISTA: 9ª PROCURADORA DE JUSTIÇA CRIMINAL MARIELA SANTOS NEVES SIQUEIRA. 09 de dez. de 2008.
[22] GRINOVER, Ada Pellegrini. Juizados Especiais. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 109.
[23] CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Op. Cit. p. 116.
[24] PASCHOAL, Janaína. Mulher e Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 3.
[25] BARBOSA, Andresa Wanderley de Gusmão. CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Op. Cit.
[26] FULLER, Paulo Henrique Aranda. Aspectos polêmicos da Lei de Violência Doméstica ou Familiar contra a mulher (Lei 11.340/2006). Boletim IBCCRIM, n° 171. fev. de 2007.
[27] FONSECA, Emanuelle Monteiro e PACÍFICO, Andrea Pacheco. As conseqüências para o Estado e para a sociedade civil da violência domética contra a mulher. Disponível em http://www.lfg.com.br. Acesso em: 29 de out. de 2009.
[28] ESPÍRITO SANTO. MINISTÉRIO PÚBLICO. HABEAS CORPUS nº 100080031196. MP nº 43484/2008. Op. Cit.
[29] MOREIRA, Rômulo de Andrade. Op. Cit.
[30] Idem.

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