sábado, 2 de julho de 2011

2.3 FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DO ESTADO EM ASSEGURAR PROTEÇÃO AOS MEMBROS DA FAMÍLIA

A Lei Maria da Penha foi criada nos termos do artigo 226, parágrafo 8º da Constituição da República de 1988, [1] que inseriu em seu texto a proteção a família, na pessoa de cada um dos que a integram, quanto à criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

O caput do artigo 226 da Constituição da República de 1988 em comento diz que a família, base da sociedade “tem especial proteção do Estado”, incluindo a assistência que o parágrafo 8º traz. Há nesse parágrafo uma especificação, quando o texto diz que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram”. Nesse sentido não é a entidade familiar, em si, que o Estado prestará assistência, mas ao marido, ou à mulher, ou aos filhos, segundo as necessidades de cada um, até mesmo em contraposição a outros membros. Assim, esse dispositivo, impõe ao Estado coibir a violência no âmbito das relações entre os integrantes da família. [2]

EMANUELLE MONTEIRO FONSECA e ANDREA PACHECO PACÍFICO [3] expõem que “A sociedade organizada tem por obrigação cobrar para que o Estado implemente mais e mais medidas e forneça estrutura necessária para que a violência doméstica seja estirpada da sociedade”.

Sabe-se que a mulher, em especial, pode ser vítima de violência em todos os seus aspectos, tanto de pessoas do sexo masculino quanto até mesmo de pessoas do mesmo sexo, em nível que ultrapassa de muito as regras da simples correção educacional que recebe de seus pais e, também, em muitas vezes, é vítima de seu próprio marido quando constitui uma família. Mas não se pode dizer que somente a mulher, desde a infância, subordinando-se a educação dos seus pais e depois quando constitui o matrimônio, “subordinando-se” ao seu marido, é que somente necessita da proteção do Estado quando ameaçada a sua integridade, como a Lei dispõe. Mas também o homem, está dentre aqueles que integram a família e que, no âmbito de suas relações, merece, portanto, total proteção do Estado.

JOSÉ AFONSO DA SILVA diz que “Em qualquer desses casos é dever do Estado intervir para fazer cessar a violência e punir o responsável por sua prática” [4].

Como demonstrado, a função do Estado é assegurar proteção à família, segundo as necessidades dos membros que a integram. Nesse diapasão, no Estado do Espírito Santo, a criação de Varas Especializadas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher vítima de violência já se encontra em funcionamento, bem como o Ministério Público Estadual. Tudo isso para dar efetividade à proteção constitucional que o § 8° do artigo 226 da Constituição da República prevê.

Reforçando o posicionamento de constitucionalidade da Lei Maria da Penha com base no art. 226, § 8º da Constituição da República de 1988, chega-se a conclusão de que tal dispositivo confere ao Poder Legislativo a possibilidade de criação de uma norma específica capaz de garantir as condições de chancelar determinadas situações cautelares a serem providas pelo Poder Judiciário.

Nesse sentido, a SNMT [5] demonstrou em sua cartilha que por ser a violência composta pela intenção, ação e dano e, especificamente aquela direcionada à mulher que é tão arraigada no âmbito das relações sociais que dificulta a denúncia e a implantação de processos preventivos que possam erradicá-la, gera inquietações e percepções da ordem pública que levam os governos a alterarem suas agendas e passarem a propor alternativas para essas demandas.

E com essas alternativas criadas pelo Estado para atenderem as demandas surgidas, no sentido de proteger as mulheres com a Lei Maria da Penha é que o artigo constitucional em comento é interpretado de forma que busca trazer alternativas não só para as mulheres vítimas de violência e que precisam de proteção, mas também para todos os membros que integram a família, respeitando um princípio fundamental de cada indivíduo, que é o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

O artigo 1º, inciso III, da Constituição da República de 1988 afirma que o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;

[...]

Esse Princípio, conforme DIAS [6] “é o Principio mais universal de todos, que se denomina como princípio máximo, ou superprincípio, ou macroprincípio, ou ainda princípio dos princípios”.

Para JORGE MIRANDA [7]:

A Dignidade da Pessoa Humana é muito mais que os Direitos Fundamentais por ser anterior e hierarquicamente superior. A razão de existir Estado e as leis é assegurar a dignidade da Pessoa Humana.

No mesmo sentido, aduzem NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA ANDRADE [8] que “é o fundamento axiológico do Direito; é a razão de ser da proteção fundamental do valor da pessoa e, por conseguinte, da humanidade do ser e da responsabilidade que cada homem tem pelo outro”.

GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MARTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET [9] também aduzem que:

Respeita-se a dignidade da pessoa quando o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar de igualdade de direitos com os seus semelhantes. Há o desrespeito ao princípio, quando a pessoa é tratada como objeto, como meio para a satisfação de algum interesse imediato.

Assim, esse dispositivo surgiu para dar efetividade e sustentação à própria existência da legislação editada, que é a Lei 11.340/2006.

A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais [10] deu provimento à Apelação Criminal nº. 1.0672.07.249317-0/001(1), afastando o óbice de inconstitucionalidade à análise das medidas protetivas pretendidas pela vítima, a título de recurso do Ministério Público de Minas Gerais.

Importante transcrever as palavras do Relator:

Ora, se a norma constitucional garante não apenas a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. 5º, I), cria a necessidade de o Estado coibir a violência no âmbito de relações familiares (art. 226, § 8º) e confere competência legislativa à União para legislar sobre direito penal e processual penal (no art. 22, I), não há dúvida de que a Lei Federal 11.340/06 deve ser interpretada afastando-se a discriminação criada e não negando vigência à norma por inconstitucionalidade que é facilmente superada pelo só afastamento da condição pessoal de mulher nela existente.

Basta ao intérprete afastar a condição pessoal de mulher em situação de risco doméstico, suscitada na sua criação, para que não haja qualquer inconstitucionalidade possível, estendendo-se os efeitos da norma em questão a quaisquer indivíduos que estejam em idêntica situação de violência familiar, ou doméstica, sejam eles homens, mulheres ou crianças.

A leitura da Lei Federal 11.340/06, sem a discriminação criada, não apresenta qualquer mácula de inconstitucionalidade, bastando afastar as disposições qualificadoras de violência doméstica à mulher, para violência doméstica a qualquer indivíduo da relação familiar, para que seja plenamente lícita suas disposições.

Neste contexto, inexiste a condição de inconstitucionalidade decorrente da discriminação produzida, mas tão somente uma imposição inconstitucional que deve ser suplantada pelo intérprete equiparando as condições de homem e mulher, de modo a permitir a análise da pretensão que é da competência do Juízo que afastou a incidência da norma.

Dessa forma, aduziu o Desembargador Relator em seu Acórdão que decretar a Lei Maria da Penha como inconstitucional, eliminando-a da ordem jurídica, seria retirar direitos legitimamente conferidos, e que isso não é a função dos tribunais.

Assim, entende precisamente que se devem estender os benefícios da Lei aos discriminados que solicitarem perante o Poder Judiciário, caso a caso.

A Lei Maria da Penha entrou em vigor em 07 de agosto de 2006 e aproximadamente com mais de um ano de vigência da Lei no ordenamento jurídico foi proferida a Decisão acima em comento, tratando-se do tema defendido nesse trabalho.

Hoje, com base nas freqüentes decisões proferidas, vê-se a aplicação da referida Lei para aquele que necessita, não tratando somente de vítima específica mulher (somente esta como sujeito passivo).

É claro que, ao decidir sobre a questão da inconstitucionalidade da Lei, suscitada em sede de Apelação Criminal, teve como bem interpretar, analisar e fundamentar a Decisão proferida pelo Desembargador Relator, de forma a abranger a necessidade que surge nos seus vários ambientes (diga-se, doméstico, familiar e de relacionamento íntimo) quando se referiu a tal questão com a aplicação das disposições da Lei (com os seus efeitos) aos discriminados que solicitarem perante o Poder Judiciário.

Nesse sentido, cabe a análise do pedido do necessitado que a requer, pois o artigo 226, § 8º da Constituição da República de 1988, compatibiliza-se e harmoniza-se de forma a propiciar a aplicação da Lei Maria da Penha tanto para mulheres quanto para homens em situação de risco ou violência decorrentes da relação familiar, em seus aspectos, podendo ser uma violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

Traz-se na íntegra a Ementa da Apelação Criminal [11] em comento:

LEI MARIA DA PENHA (LEI 11.340/06) - INCONSTITUCIONALIDADE SUSCITADA PELO JUÍZO DE 1º GRAU COMO ÓBICE À ANÁLISE DE MEDIDAS ASSECURATÓRIAS REQUERIDAS – DISCRIMINAÇÃO INCONSTITUCIONAL QUE SE RESOLVE A FAVOR DA MANUTENÇÃO DA NORMA AFASTANDO-SE A DISCRIMINAÇÃO - AFASTAMENTO DO ÓBICE PARA A ANÁLISE DO PEDIDO. A inconstitucionalidade por discriminação propiciada pela Lei Federal 11.340/06 (Lei Maria da Penha) suscita a outorga de benefício legítimo de medidas assecuratórias apenas às mulheres em situação de violência doméstica, quando o art. 5º, II, c/c art. 226, § 8º, da Constituição Federal, não possibilitaria discriminação aos homens em igual situação, de modo a incidir em inconstitucionalidade relativa, em face do princípio da isonomia. Tal inconstitucionalidade, no entanto, não autoriza a conclusão de afastamento da lei do ordenamento jurídico, mas tão-somente a extensão dos seus efeitos aos discriminados que a solicitarem perante o Poder Judiciário, caso por caso, não sendo, portanto, possível a simples eliminação da norma produzida como elemento para afastar a análise do pedido de quaisquer das medidas nela previstas, porque o art. 5º, II, c/c art. 21, I e art. 226, § 8º, todos da Constituição Federal, compatibilizam-se e harmonizam-se, propiciando a aplicação indistinta da lei em comento tanto para mulheres como para homens em situação de risco ou de violência decorrentes da relação familiar. Inviável, por isto mesmo, a solução jurisdicional que afastou a análise de pedido de imposição de medidas assecuratórias em face da só inconstitucionalidade da legislação em comento, mormente porque o art. 33 da referida norma de contenção acomete a análise ao Juízo Criminal com prioridade, sendo-lhe lícito determinar as provas que entender pertinentes e necessárias para a completa solução dos pedidos. Recurso provido para afastar o óbice. APELAÇÃO CRIMINAL N° 1.0672.07.249317-0/001 - COMARCA DE SETE LAGOAS - APELANTE(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - APELADO(A)(S): DANIEL CAMPOLINA GOMES - RELATOR: EXMO. SR. DES. JUDIMAR BIBER.

Portanto, defende-se que o dispositivo constitucional em análise, tem como fundamento servir de efetivação à constitucionalidade da Lei Maria da Penha, bem como proporcionar a possibilidade de aplicação da Lei em favor do homem, ou melhor, dos necessitados na família.


[1] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
[2] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 854.
[3] FONSECA, Emanuelle Monteiro e PACÍFICO, Andrea Pacheco. As conseqüências para o Estado e para a sociedade civil da violência doméstica contra a mulher. Disponível em http://www.lfg.com.br. Acesso em: 29 de out. de 2008.
[4] SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 854.
[5] A Lei Maria da Penha: Uma conquista de novos desafios. Op. Cit.p. 7.
[6] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 59.
[7] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3 ed. Coimbra: Coimbra, 1996, p.237.
[8] NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE, Rosa Maria. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 40.
[9] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Martires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. Cit. p. 375.
[10] MINAS GERAIS. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. APELAÇÃO CRIMINAL nº. 1.0672.07.249317-0/001(1). APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. APELADO: DANIEL CAMPOLINA GOMES. RELATOR: JUDIMAR BIBER. DATA DA PUBLICAÇÃO: 21/11/2007. DATA DO JULGAMENTO: 06/11/2007. Disponível em: http://www.tjmg.jus.br. Acesso em: 05 de jun. 2009.
[11] MINAS GERAIS. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. APELAÇÃO CRIMINAL nº. 1.0672.07.249317-0/001(1). Idem. nota 46.

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