sábado, 2 de julho de 2011

2 LEI 11.340/2006 – JUSTIFICATIVA E ASPECTOS GERAIS

2.1 VIOLÊNCIA DE GÊNERO, SUJEITO PASSIVO E SUJEITO ATIVO


A Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (Lei 11.340/2006), também conhecida como Lei Maria da Penha [1], foi uma resposta às incansáveis lutas dos movimentos em defesa das mulheres, criando mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do parágrafo 8o do artigo 226 da Constituição da República de 1988, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil. A Lei ainda dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. [2]

Em síntese, a Lei Maria da Penha [3]:

[...] define a violência doméstica e familiar contra a mulher e estabelece as formas dessa violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral; determina que a violência doméstica contra a mulher independe de sua orientação sexual; determina que a mulher somente poderá renunciar à denúncia perante o juiz; ficam proibidas as penas pecuniárias (pagamento de multas ou cestas básicas); é vedada a entrega da intimação pela mulher ao agressor; estabelece que a mulher vítima de violência domestica será notificada dos atos processuais, em especial quando do ingresso e saída da prisão do agressor; que a mulher deverá estar acompanhada de advogado ou defensor em todos atos processuais; retira dos juizados especiais criminais (Lei 9.099/1995) a competência para julgar os crimes de violência doméstica contra a mulher; altera o código de processo penal para possibilitar ao juiz a decretação da prisão preventiva quando houver riscos a integridade física ou psicológica da mulher; altera a Lei de Execuções Penais para permitir ao juiz que determine o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação; determina a criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher com competência cível e criminal para abranger as questões de família decorrentes da violência contra a mulher; caso a violência doméstica seja cometida contra deficiente, a pena será aumentada em um terço.

ROGÉRIO SANCHES CUNHA e RONALDO BATISTA PINTO [4] explicam que de acordo com a Lei 11.340/2006, entende-se por violência doméstica e familiar toda a espécie de agressão (ação ou omissão) dirigida contra a mulher (vítima certa), num determinado ambiente (doméstico, familiar ou de intimidade), baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

As formas de violência doméstica e familiar contra a mulher estão elencadas no artigo 7º da Lei Maria da Penha:

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

CUNHA e PINTO [5] ressaltam sobre as diversas formas de violência elencadas no artigo 7º da Lei, que compreendem a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral:

Violência física: é o uso da força, mediante socos, tapas, pontapés, empurrões, arremesso de objetos, queimaduras etc., visando, desse modo, ofender a integridade e a saúde corporal da vítima, deixando ou não marcas aparentes [...].

Violência psicológica: entende-se a agressão emocional (tão ou mais grave que a física). O comportamento típico se dá quando o agente ameaça, rejeita, humilha ou discrimina a vítima, demonstrando prazer quando vê o outro se sentir amedrontado, inferiorizado e diminuído [...].

Violência sexual: O inciso III, de forma ampla, entende por violência sexual qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos [...].

Violência patrimonial: entende-se por violência patrimonial qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades [...].

Violência moral: a violência verbal, entendida como qualquer conduta que consista em calúnia, difamação ou injúria normalmente se dá concomitante à violência psicológica [...].

Essa Lei trouxe um tratamento jurídico diverso ao do tratamento dado no Código Penal quando a pessoa sofre algum tipo de violência, limitando, quanto a sua aplicação, o sujeito passivo (vítima), que é somente a mulher.

Mas, não se pode deduzir que somente ela é potencial vítima de violência doméstica, familiar ou de relacionamento íntimo. Também o homem pode sê-lo, conforme se depreende da redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, que não restringiu o sujeito passivo, abrangendo ambos os sexos [6]. O que a Lei em comento limita são as medidas de assistência e proteção, estas sim aplicáveis somente à ofendida (vítima mulher). [7]

Nesse caso, a mulher (ofendida) passou a contar com essa nova Lei, não somente de caráter repressivo, mas, também, preventivo e assistencial, criando mecanismos aptos a coibir as modalidades de agressão (violência). [8]

Dessa forma, a Lei Maria da Penha criou mecanismos para coibir as formas de violência em seus âmbitos doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo, onde buscou especificamente a tutela da mulher (sujeito passivo), não por razão do sexo, e sim em virtude do gênero.

Neste trabalho busca-se tratar a questão do gênero para depois abordar a classificação do sujeito passivo e do sujeito ativo.

LUIZ FLÁVIO GOMES [9] aborda a diferença entre homens e mulheres, a fim de se conceituar a violência de gênero, sendo que todas as diferenças não decorrentes da biologia e as “impostas pela sociedade” são diferenças de gênero. Homens e mulheres se diferenciam, primeiramente, em sua forma física e biológica quanto ao sexo, fora disso, qualquer outro tipo de distinção é cultural (e é aqui que reside a violência de gênero). Cada sociedade, em cada época, forma uma identidade para a mulher e para o homem. O modo como a sociedade vê o papel de cada um, com total independência frente ao sexo (ou seja: frente ao substrato biológico), é o que define o gênero.

A Secretaria Nacional Sobre a Mulher Trabalhadora – SNMT [10] aduziu no mesmo sentido:

A abordagem da violência numa perspectiva de gênero demonstra e sintetiza as desigualdades sócio-culturais existentes entre homens e mulheres, que repercute no espaço público e privado, impondo papéis sociais desiguais, construídos historicamente, onde o poder masculino domina, em detrimento dos direitos das mulheres.

A categoria gênero faz com que a violência seja mais facilmente percebida como uma situação desigual entre mulheres e homens e que, por não ser natural e sim advinda do processo de socialização, pode ser transformada em igualdade, promovendo relações democráticas entre os sexos.

Esta violência de gênero demonstra uma relação de poder, dominação do homem e submissão da mulher que se consolidou ao longo do tempo, mas que são reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, influenciando a educação, os meios de comunicação e os costumes. Joan Scott (1991:5) introduz a temática de gênero como categoria e análise ao conceituá-la como “uma forma primeira de significar as relações de poder, ou melhor, é um campo primeiro no seio do qual o poder é articulado”, sendo poder aqui entendido como a rede do poder de Foucalt, onde há portador e transmissor.

SÉRGIO RICARDO DE SOUZA traduz em sua obra o conceito de sujeito passivo e sujeito ativo, trazendo para esse último duas correntes doutrinárias. A Lei Maria da Penha em várias partes de seus dispositivos e especialmente em seu preâmbulo deixa claro que o sujeito passivo reconhecido por ela é apenas a mulher que tenha sido vítima de agressão decorrente de violência doméstica, familiar ou de relacionamento íntimo. [11]

Tanto a mulher que já não mais conviva com a pessoa responsável pela agressão, quanto aquela que nunca tenha convivido, mas que tenha mantido ou mantenha uma relação íntima com o agressor ou agressora, desde que a violência decorra de alguma dessas relações, podem figurar no pólo passivo, não importando que ocorra somente no âmbito doméstico, podendo ser até mesmo fora dele. [12]

Quanto ao sujeito ativo, há divergências doutrinárias quanto à pessoa que pode figurar como autor nos crimes abrangidos por essa Lei. A primeira corrente defende que, por se tratar de crime de gênero e cujos fins principais estão voltados para a proteção da mulher vítima de violência doméstica, familiar ou de relacionamento íntimo, no pólo ativo pode figurar apenas o homem e, quando muito, a mulher que, na forma do parágrafo único do artigo 5º desta Lei, mantenha uma relação homoafetiva com a vítima. [13]

Já a segunda corrente, que é a defendida por SOUZA, [14] juntamente com GOMES [15], entende ser a mais coerente, pois dá menos ensejo a possíveis questionamentos quanto à questão da constitucionalidade, já que trata igualmente homens e mulheres quando vistos sob a ótica do pólo ativo, resguardando a primazia à mulher apenas enquanto vítima.

Portanto, essa segunda corrente defende que a ênfase principal da presente Lei não é a questão do gênero, tendo o legislador dado prioridade à criação de “mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, sem importar o gênero do agressor, que tanto pode ser homem, como mulher, desde que esteja caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade. [16]

Hoje, defendemos uma terceira corrente que trata a Lei como uma Lei de gênero, por isso que existiu para proteger a mulher, que é a que mais sofre dentro de um contexto social e cultural, podendo suas medidas protetivas ser aplicadas em favor de qualquer pessoa (sujeito passivo) desde que comprovado que a violência teve ocorrência dentro de um contexto doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo, podendo ser tanto homem quanto mulher.

MARIA BERENICE DIAS [17] prevê a possibilidade de o sujeito passivo não ser necessariamente a mulher quando a Lei prevê mais uma majorante ao crime de lesão corporal em sede de violência doméstica (consubstanciado no artigo 129, § 11 do Código Penal), se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. Justifica que seja de qual sexo for o deficiente físico (diga-se, homem ou mulher), sendo alvo de lesão corporal, a pena de seu agressor será aumentada de um terço.

Esse trabalho busca, diferentemente do posicionamento acima adotado por DIAS, considerar como sujeito passivo tanto homem quanto mulher, independentemente de se tratar de pessoa portadora de deficiência, caminhando de acordo com a terceira corrente defendida por nós.

Atualmente, para dar efetividade a Lei, trazendo-se mais garantias aos sujeitos passivos das relações domésticas, familiares e de relacionamento íntimo, é que tanto a doutrina (conforme a terceira corrente adotada neste trabalho), jurisprudência e o mais importante, as autoridades competentes (esse tema será abordado no tópico 2.3 e no tópico 3, com o poder de execução de suas atividades em prol daquele que as necessita, atuam de forma positiva diante das novas necessidades que surgem.

A Lei 11.340/2006 surgiu, como uma forma justa e extremamente necessária, para coibir e prevenir a mulher (sujeito passivo), vítima de violência no âmbito de suas relações. Só que acontece que, não somente a mulher, mas também o homem tornou-se potencial vítima dessa violência, razão pela qual a nomenclatura “sujeito passivo” também passou a ser dada a ele, em casos excepcionais, conforme será apresentado.


[1] A justificativa de se chamar a Lei 11.340/2006 de Lei Maria da Penha é por causa da história dolorosa em que protagonizou a farmacêutica Maria da Penha Fernandes. Resumidamente, em 1983, por duas vezes seu marido tentou assassiná-la. Na primeira vez por arma de fogo e na segunda por eletrocussão e afogamento. As tentativas de homicídio resultaram em lesões irreversíveis a sua saúde, como paraplegia e outras seqüelas. Maria da Penha transformou dor em luta, tragédia em solidariedade. Fonte: Comprometa-se. Você tem voz. A violência contra a mulher, não. Cartilha da Secretaria de Estado do Trabalho, Assistência e Desenvolvimento Social – SETADES. p. 08.
[2] BRASIL. LEI Nº 11.340/2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 27 de jan. de 2009.
[3] Fonte: Comprometa-se. Você tem voz. A violência contra a mulher, não. Op. Cit. p. 06/07.
[4] CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 39.
[5] CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Op. Cit. p. 61/63/65. nota 4.
[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Abrangência da Definição de Violência Doméstica. Boletim IBCCRIM, Ano XVII, n° 198. Maio de 2009.
[7] CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Op. Cit.. p. 30. nota 4.
[8] Idem.
[9] GOMES, Luiz Flávio. Lei Maria da Penha: aplicação para situações análogas. Disponível em: . 27 de abril de 2009.Acesso em: 27 de abr. de 2009.
[10] A Lei Maria da Penha: Uma conquista de novos desafios. Disponível em: . Acesso em: 01 de jan. de 2009. p. 6/7.
[11] SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários a Lei de Combate à Violência Contra a Mulher. Curitiba: Juruá, 2007. p. 46.
[12] SOUZA, Sérgio Ricardo de. Op. Cit. p. 46/47. nota 11.
[13] Idem. p. 47
[14] Idem.
[15] GOMES, Luiz Flávio. BIANCHINI, Alice. Competência Criminal da Lei de Violência Contra a Mulher. Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20060904210631861. Acesso em: 22 de fev. de 2009.
[16] SOUZA, Sérgio Ricardo de. Op. Cit. p.47. nota 11.
[17] DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 42.



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