sábado, 6 de agosto de 2011

Princípio da Culpabilidade e exclusão penal do agente.


Grande parte da doutrina penal moderna entende que a culpabilidade é um dos elementos constitutivos do conceito analítico de crime, cabendo a ela a função de analisar a possibilidade de imputar o injusto ao seu autor (crime é fato típico, antijurídico e culpável). A expressão nulla poena sine culpa significa que jamais será imposta pena sem que tenha o agente atuado culpavelmente. Sem culpabilidade não pode haver pena.

O princípio da culpabilidade, ademais, visa à eliminação da responsabilidade puramente objetiva, porque determina que se proceda a uma avaliação do fato em face do agente. No antigo sistema, antes de se desenvolverem os fundamentos dogmáticos do conceito de crime, a responsabilidade se assentava no princípio do versari in re illicita, segundo o qual todo aquele que tivesse realizado uma conduta irregular deveria responder por ela, independentemente de qualquer outra condição. Por outro lado, no direito moderno, a culpabilidade tem por base o fato e não as tendências ou disposições do autor. Com a culpabilidade se pronuncia sobre o autor, pessoalmente, em decorrência do fato por ele praticado e não de seu caráter, conduta de vida ou defeitos pessoais, um juízo de inadequação, pelo qual se afirma sua responsabilidade frente à ordem jurídica. Trata-se, assim, de um juízo jurídico e não moral.

A antiga postura de considerar que na culpabilidade se pronuncia um juízo de reprovabilidade sobre o autor está hoje em franca discussão. Os partidários da teoria finalista, ao proporem uma separação essencial entre os elementos do tipo e da culpabilidade, mediante a exclusão de seus elementos subjetivos, fixaram o conteúdo da culpabilidade no juízo de reprovabilidade. Mas a abertura funcional, proposta por Roxin e outros, passa a relacionar a culpabilidade aos objetivos preventivos da pena. Com isso, cria-se a base para reformular também o conteúdo de seu juízo: em lugar de juízo de reprovaçāo, que a poderia confundir com juízos de caráter moral, tem lugar um juízo de inadequaçāo. Esse é talvez o ponto nodal da questāo da culpabilidade. Como consequência, ademais, de um juízo de inadequaçāo, será possível conduzi-la em um sentido mais limitativo do que propriamente repressivo.

De acordo com essa nova tendência se manifesta TAVARES (2009, p. 412) “a culpabilidade desempenha, assim, o papel de filtrar as proibições e imposições normativas com vistas a proteger, em primeiro plano, a liberdade pessoal como pressuposto essencial da ordem jurídica."

Ainda o mesmo autor reforça esse argumento em obra específica sobre o tema:
O juízo de culpabilidade se inicia como um juízo negativo da capacidade de motivação. Esse juízo deve ser emitido como uma condição essencial da culpabilidade em um estado de garantia e não pode ser substituído por outras formulaçōes, sob pena de vir a se confundir com um juízo puramente moral (TAVARES, 2011, p. 133).

Com base nisso se pode dizer que a culpabilidade dever ser vista hoje como um elemento de garantia e não mais como manifestação moral, que está de acordo com uma ordem constutucional orientada pelo princípio da ultima ratio.

Atendendo a essa postura funcional, pode-se dizer que a culpabilidade conta com três requisitos, quais sejam, a capacidade de entender e de querer, a consciência da ilicitude e a normalidade das circunstâncias, manifestada pela exigibilidade de conduta diversa. Por meio desses elementos será possível aferir se o sujeito estava ou não capacitado a ser orientado pela motivação engendrada pela norma e, assim, merecer ou não os efeitos preventivos do direito penal.

Exclui-se a responsabilidade penal do agente sob a perspectiva da culpabilidade quando um desses requisitos é afetado. As causas excludentes da culpabilidade se dividem em grupos que abordam a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. 

A causa que afetar qualquer desses requisitos pode conduzir à eliminação da culpabilidade. Essas causas podem ser de ordem biológica ou psicológica, como, por exemplo, a doença mental ou o desenvolvimento mental incompleto ou retardado, a menoridade, a embriaguez completa e fortuita, e também de ordem psicológico-normativa, como o desconhecimento da proibição. Conjugadas essas causas a juízos normativos podem embasar a exclusão da culpabilidade. 

Assim, o desconhecimento da proibição, quando inevitável, dá lugar ao erro de proibição direto ou mesmo à descriminante putativa fática, nos quais se opera uma exclusão da consciência potencial da ilicitude e, consequentemente, da culpabilidade. Já a exigibilidade de conduta diversa pode ser afetada pela coação moral irresistível, obediência hierárquica e outras situaçōes semelhantes, até mesmo representadas por uma cláusula geral de inexigibilidade de conduta diversa, de modo a desculpar a conduta do agente.

Dentro desse panorama, deve-se ressaltar que todo juízo de culpabilidade pressupōe uma capacidade de culpabilidade, até mesmo para as teorias da reprovaçāo, como proposto na obra de Wezel. Este, aliás, não se descura disso, ao afirmar que:
A capacidade de culpabilidade tem, portanto, um momento cognoscitivo (intelectivo) e um de vontade (volitivo): a capacidade de compreensão do injusto e de determinação da vontade (conforme o sentido). Somente esses momentos em conjunto constituem a capacidade de culpabilidade. Quando por faltar maturidade ou em consequência de estados mentais anormais não se verificar um desses momentos, o autor não será capaz de culpabilidade (WELZEL, 1970, p. 216).

Embora finalista, parece que Welzel, aqui, se orienta de modo funcional, uma vez que, se a capacidade de culpabilidade está amparada em momentos intelectivos e volitivos, seu exame não pode estar dissociado do juízo acerca da capacidade de motivação do agente.



TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3º ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

TAVARES, Juarez. Culpabilidade e individualização da pena. Cem Anos de Reprovação. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Tradução de Juan Bustos Ramírez e Sergio Yañez Peres. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1970.

6 comentários:

  1. Iara,gostei muito do seu artigo relacionado ao principio da culpabilidade...por favor se houver outros disponha pois está sendo de muita valia.
    Grato,
    Cosme.

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  2. Obrigada, Cosme. Vou postar sempre! Um beijo.

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  3. Iara, parabéns pelo artigo, está realmente ótimo, estou cursando pós graduação em Ciências Penais, o utilizei e citei em meu trabalho. Com todo respeito à nobre jurista, discordo quando à expressão "juízo de reprovabilidade" criticado em seu trabalho, sugerindo a sua substituição por "juizo de inadequação", pois a expressão em questão não tem o caráter de repressão moral mencionado. Zaffaroni já dizia que a reprovalidade é uma exigência geral da culpabilidade do delito. Se é uma exigência geral, nada tem de moral e íntima, e a simples mudança de dicção não mudaria seu resultado. A crítica se justifica porque fervorosas discussões para correção de vocábulos não se descarrega no âmbito da aplicação do princípio. Princípios são dogmas e se aplicam por ponderação. Não se pode redigir estritamente princípios, pois sempre serão abstratos. Grande abraço

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  4. Em relação aos comentários acerca da relação entre reprovação pela culpabilidade e conteúdo moral, cuja expressão linguística é tomada por alguns doutrinadores por seus efeitos metonímicos, cabe assinalar, apenas para sedimentar, de maneira definitiva, a crítica funcional a esse conceito, o que sobre o tema diz Nilo Batista, Professor Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro:

    “Muitos penalistas procuraram desvencilhar o juízo de reprovação de seu (inevitável) conteúdo moral. Hassemer chegou a falar em uma “reprovação forense”, embora, ao lado de Ellscheid, tenha concebido uma pena sem reprovação na substituição da culpabilidade por uma responsabilidade ancorada na proporcionalidade. À procura das penas perdidas, Zaffaroni observava que uma culpabilidade que se reconheça como reprovabilidade “não consegue libertar-se de componentes éticos, posto que uma reprovação sem momentos éticos é uma contradictio in adiecto”. (Cem Anos de Reprovação, Rio de Janeiro, 2011, p. 173.)

    Nesse caso específico, Nilo Batista cita a obra mais espetacular de Zaffaroni, “En Busca de las Penas Perdidas”, Buenos Aires, 1989, p. 269, na qual o mestre argentino traça o objetivo de desmitificar as artimanhas do poder punitivo.

    Na verdade, desde a formulação de Frank, em 1907, de uma culpabilidade normativa, em oposição à concepção psicológica, tendo por base a chamada normalidade das circunstâncias concomitantes, está presente em seu conceito um inafastável conteúdo moral. Justamente porque o juízo de culpabilidade já não decorre de uma constatação empírica, seu enunciado, proferido sobre a base de uma hipotética normalidade, jamais pôde se desprender de um conteúdo ético. Os próprios exemplos manipulados por Frank, do caixeiro ou do janota, para ressaltar o que se poderia compreender por normalidade de circunstâncias, são todos impregnados de preceitos morais. O grande desafio do direito penal é afastar-se desse juízo moral. Ainda que isso seja tentado, na prática, o modelo continua sendo aquele de 1907. Afinal, existe maior juízo moral do que aquele encerrado na frase sempre comum nas decisões judiciais de que o réu tem uma personalidade voltada para o crime? Desde quando a psicologia conseguiu classificar as pessoas segundo essa espécie de personalidade?
    Isso é puro juízo moral, bem coerente com a chamada reprovação da culpabilidade, mas contrário aos preceitos de um Estado democrático de direito.

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