Artigo publicado na Revista Seleções
Jurídicas – COAD. SANDES, Iara
Boldrini. Violação dos direitos das crianças e adolescentes. Ação ou
reação? Revista Seleções Jurídicas. COAD. Rio de Janeiro, Julho/2014.
Iara Boldrini*
Ultimamente
o que mais se comenta nos noticiários da TV e nas redes sociais é sobre o crime
brutal sofrido pelo menino Bernardo Boldrini, de 11 anos. Supostamente
assassinado pela madrasta, e amiga, com o consentimento/participação ou
conhecimento posterior do pai, Bernardo é mais um, dentre as várias crianças,
que fazem parte de uma alarmante estatística de crianças e adolescentes vítimas
de violência em seus próprios lares.
Sabe-se
que, por mais avançado que o Brasil esteja, se comparado há décadas atrás,
quanto ao assunto referente aos direitos das crianças e adolescentes, o Estado
e a sociedade, como um todo, ainda não são capazes de promover e assegurar de
forma plena a proteção devida a que lhe são necessárias.
Vários são os casos em que pais e mães são os
responsáveis pelos crimes/acontecimentos de violência e, consequentemente,
violação dos direitos de crianças e adolescentes, correspondentes à metade dos
casos registrados, conforme dados disponibilizados por Conselhos Tutelares de
todo o país, em pesquisa realizada ao Governo Federal.
As violações podem se expressar de diversas formas
como agressões físicas (que podem levar a morte), verbais, psicológicas,
patrimoniais, ameaças, maus-tratos, negligência, abandono afetivo, patrimonial,
intelectual, abuso sexual, dentre outros; podendo, ademais, ocorrer em suas
residências, escolas ou nas ruas. A
violação dos direitos da criança e adolescente até mesmo se dá por meio de
entidades e instituições públicas ou privadas responsáveis pelo controle social,
que atuam tanto no controle social formal quanto no controle social informal, e
que têm, por dever, resguardá-los.
Os
direitos das crianças e adolescentes se tornou um ramo autônomo, formado por um
conjunto de meios de proteção com variados diplomas legais e normativos em
geral, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecido como ECA, que é
um dos diplomas mais expressivos desses direitos, formado pela Constituição
Federal, pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, pela Declaração
dos Direitos da Criança e por várias Portarias e Resoluções que dispõem sobre
variados assuntos que visam à proteção absoluta e integral do menor de dezoito
anos.
A
Constituição Federal, quando trata da Ordem Social, confere em seu Capítulo VII
a proteção à família, a criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso. Referente
à criança e ao adolescente, a Constituição avança em sua proteção, fixando
diversos direitos fundamentais, reforçados pela Convenção sobre os Direitos da
Criança e pelo próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.
De
acordo com o artigo 227, caput, da
Constituição Federal, é dever da família, da sociedade e do Estado,
colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão, assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária.
Ademais,
continua que o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da
criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não
governamentais, bem como assegura, em seu § 3º, o direito a proteção integral a
criança e ao adolescente, que abrangerá a proibição de trabalho noturno,
perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos; idade mínima de quatorze anos
para admissão ao trabalho, que deverá ser na condição de aprendiz até os
dezesseis anos; garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; garantia de acesso do trabalhador adolescente e jovem à
escola; garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional,
igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado,
segundo dispuser a legislação tutelar específica; obediência aos princípios da
brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade; estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica,
incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma
de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado
e programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente
e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins.
Aliás,
como desdobramento dessa proteção especial por parte do Estado, a lei punirá
severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do
adolescente e, inclusive, o Estatuto da Criança e do Adolescente retratou a
preocupação mundial com os direitos das crianças e adolescentes, dispondo sobre
a proteção integral à criança e ao adolescente. Em seus primeiros artigos,
foram-lhes incorporados à doutrina da proteção integral, assim como a
necessidade da garantia aos direitos da família, pelo Estado e pela sociedade,
com absoluta prioridade.
A
criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata a lei em comento,
assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades,
a fim de contribuir com o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e
social, em condições de liberdade e de dignidade, que lhes é de direito.
A
garantia de prioridade compreende a primazia de receber proteção e socorro em
quaisquer circunstâncias, precedência de atendimento nos serviços públicos ou
de relevância pública, preferência na formulação e na execução das políticas
sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
São
muitos os direitos e garantias assegurados em toda legislação, mas, será que eles
são respeitados/atendidos?
A violação dos direitos consagrados na
Constituição Federal, em leis infraconstitucionais, tratados e convenções
internacionais se tornam cada vez mais constante e assustadora, pois põem em
situação de risco frequente aqueles que mais necessitam de ajuda para
sobreviver e ter um desenvolvimento saudável.
A violência, em suas
diversas modalidades, não assola somente a classe social mais baixa. Questões
vinculadas a dinheiro, herança ou bens materiais de qualquer espécie, vêm sendo
motivo, também, de violência contra crianças e adolescentes em classes sociais
com poder aquisitivo maior, como pode ter sido o motivo precursor da fatalidade
ocorrida com o menino Bernardo Boldrini. Na maioria das vezes, tais
violações/delitos não se tornam públicos, ao fim de se manter, perante a
sociedade, uma aparência enganosa sobre o que, realmente, ocorre naquele âmbito
familiar.
As autoridades
públicas, que tem como função ajudar a sociedade que necessita de mecanismos de
proteção e instrução, bem como disciplinares, para assegurar a convivência
interna de seus membros, garantindo a conformidade dos objetivos eleitos no
plano social, devem levar em consideração a palavra da criança. A Convenção
sobre os Direitos da Criança, promulgada pelo Brasil em 1990, dispõe regras que
foram estabelecidas para que a criança seja ouvida quanto aos assuntos a ela
pertinentes, indo de encontro com o princípio da igualdade, estabelecido pela
Carta das Nações Unidas, que equipara os direitos das crianças aos dos adultos,
colocando-as como membros da sociedade humana.
Os Estados devem assegurar à criança, que for capaz
de formar seus próprios pontos de vista, o direito de exprimir suas opiniões
livremente sobre todas as matérias atinentes a ela, levando-se devidamente em
conta essas opiniões em função da idade e maturidade da criança. Para esse fim,
a criança será, em particular, dada a oportunidade de ser ouvida em qualquer
procedimento judicial ou administrativo que lhe diga respeito, diretamente ou
através de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras
processuais do direito. É o que aduz o artigo 12 da Convenção. Parece simples,
não? Mas não é. Na prática, na maioria das vezes, as crianças não são ouvidas e
são vítimas, acrescente-se, do descaso. Fazendo remissão ao ocorrido com Bernardo,
este procurou o próprio Ministério Público (que tem como função a garantia do direito da
criança e do adolescente, e, além dos casos em que atua como parte, sempre
atuará em procedimentos que digam respeito aos interesses e direitos previstos
no Estatuto da Criança e do Adolescente, como fiscal da lei), para relatar o problema que sofria em casa. Ouvido pelo representante do Parquet
Ministerial e pelo juiz, estes resolveram dar uma nova oportunidade de
aproximação para o pai de Bernardo, com sua nova família constituída, a fim de
reconstituírem os laços de afeto, carinho e união àquela família. E deu no que
deu. De quem é a culpa?
O
próprio Conselho Tutelar, também, seria uma entidade que tem o dever legal de
proteger a criança e o adolescente, pois tem como função primordial trazer
proteção a estes seres e zelo à observância dos direitos da criança e do
adolescente. Ele, juntamente com os Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional
de Direitos da Criança e do Adolescente, completa a rede de proteção já formada
pelo Juizado da Infância e Juventude, Ministério Público e Defensoria Pública.
Então, onde estava à proteção consagrada dos Conselhos Tutelares e demais, nos
lares das crianças e adolescentes vítimas de seus próprios pais?
O Código Civil,
em seu artigo 1.638, trabalha com a perda do poder familiar, ao pai ou a mãe
que castigar imoderadamente o filho, deixá-lo em abandono, praticar atos
contrários à moral e aos bons costumes ou incidir, reiteradamente, nas faltas
previstas no artigo 1.637, do mesmo diploma legal.
Junto à perda,
de forma mais branda, se tem a suspensão do poder familiar, como uma forma de
penalizar os pais, aos quais lhe são incumbidos o dever de sustento, guarda,
educação dos filhos menores e a obrigação de cumprir e fazer cumprir as
determinações judiciais.
Além disso, o pai e a mãe, enquanto no exercício do
poder familiar, são usufrutuários e têm a administração dos bens dos filhos
menores sob sua autoridade e, caso arruínem os bens dos filhos, cabe ao juiz,
requerendo algum parente ou o Ministério Público, adotar à medida que lhe
pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder
familiar, quando convenha, pois a proteção, aliás, é de qualquer
arbitrariedade por parte do Estado, da família ou da sociedade, nos termos do
artigo 15 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no sentido de que “a criança
e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas
humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis,
humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. Entretanto,
podemos dizer que a perda ou suspensão do poder familiar pode ser uma solução para
a cessação da violência perpetrada em face das crianças e adolescentes? E se a
violência empregada for à morte?
O Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe,
brilhantemente, de forma ampla, que é dever de todos velar pela dignidade da
criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano,
violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor, ou seja, além da família,
deu um papel importante e amplo a toda a sociedade. O tema das violações de
direitos das crianças e adolescentes foi introduzido, pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente, em seu artigo 5º, no sentido de que nenhuma criança ou
adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer
atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Tudo isso acomete
diretamente na erradicação da violência às crianças e adolescentes?
São muitas perguntas, para
poucas respostas. Constantemente, toda carga de responsabilidade, quando a
sociedade se depara com crimes violentos ou qualquer tipo de abuso (físico,
mental ou sexual) em face de crianças ou adolescentes, ou a qualquer outro tipo
de crime que causa ojeriza e repulsa na sociedade, é atribuída ao Direito
Penal, juntamente com os Poderes responsáveis para assegurar direitos,
garantias, controle, leis, repressão, prevenção, justiça e etc. (Legislativo,
Executivo e Judiciário).
Apesar
de haver vedações a qualquer tipo de atentado a direitos fundamentais de
crianças e adolescentes, a significância dos números é alta, mesmo com o
conjunto de organizações que atuam em defesa e proteção dos direitos humanos de
crianças e adolescentes, como, por exemplo, o Ministério Público, Conselho
Tutelar, Defensoria Pública, Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente instalados no país a partir da década de 1990 e etc.
Com
todo esse aparato constitucional, legal e institucional (só o Estatuto da
Criança e do Adolescente, hoje, conta com mais de vinte anos de existência), a
convivência familiar é uma máxima elementar dos direitos assegurados à criança
e ao adolescente, rompendo com a concepção histórica da institucionalização.
Esse
problema é complexo, pois além de suas causas serem múltiplas, o que não se vê
- fato inegável – não tem como ser tratado, o índice de falta de notificação ou
denúncias aos órgãos competentes é muito elevado. Outro problema é a falta de
conhecimento da obrigatoriedade de tal comunicação, que é obrigatória para os
profissionais da saúde e educação, e a própria dificuldade de se identificar a
ocorrência de práticas de violência.
A
efetividade dos mecanismos de denúncia e notificação garante a possibilidade
não apenas de atendimento às vítimas, mas, também, de responsabilização e
tratamento dos agressores, evitando a impunidade e o ciclo repetitivo da
violência.
Deve-se existir mais
programas sociais eficazes voltados para a educação. Pois é. Educação. Educação
que ensina, orienta e conscientiza famílias carentes não só de instrução
intelectual e financeira, mas, também, de afeto. A nossa legislação assegura
que qualquer criança ou adolescente que não esteja sob o poder familiar e que
não esteja em sua família extensa ou ampliada, mediante guarda ou tutela,
poderá ser adotada. E era isso que o menino Bernardo queria. Ser adotado. Queria
uma nova família, uma nova vida, uma oportunidade para ser feliz. Ele tinha
somente dois sonhos, relatados aos amigos e familiares: tocar o sino da igreja
e ter a chave de casa, para poder chegar mais tarde. Triste história. Triste
fim.
*Iara Boldrini Sandes – Advogada em São Paulo e Professora de
Direito Penal. Assessora e Membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas da
OAB/SP. Especialista em Ciências Penais. Representante em São Paulo do
Instituto Brasileiro de Direito e Política de Segurança Pública – IDESP.
Integrante do Corpo Editorial da Revista de Direito e Segurança Pública, do
Instituto Brasileiro de Direito e Política de Segurança Pública – IDESP. Autora
de obras jurídicas para concursos públicos e OAB.
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