segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A nova Lei de Prisão (Lei 12.403/2011) não mais permite a decretação da prisão preventiva de ofício na fase do inquérito policial. Já a Lei Maria da Penha permite. Qual lei prevalece?

Fonte: http://atualidadesdodireito.com.br/iaraboldrini/2011/11/22/a-nova-lei-de-prisao-lei-12-4032011-nao-mais-permite-a-decretacao-da-prisao-preventiva-de-oficio-na-fase-do-inquerito-policial-ja-a-lei-maria-da-penha-permite-qual-lei-prevalece-2/


Antes da entrada em vigor da nova Lei de Prisões e Medidas Cautelares (Lei 12.403/2011), a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) acrescentou no seu art. 42 o inciso IV ao art. 313 do CPP, que passou a ter a seguinte redação:

Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos:

IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

Permite-se, neste artigo, que qualquer que seja o crime (doloso), ainda que apenado com detenção (uma ameaça, por exemplo), seja decretada a prisão preventiva, bastando que estejam presentes o fumus comissi delict (indícios da autoria e prova da existência do crime – art. 312 do CPP) e que a prisão seja necessária para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (MOREIRA, 2009).

Aliás, no art. 20 da Lei 11.340/2006 já se prevê que:

Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.

Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

Com a entrada em vigor da Lei 12.403/2011, o inciso IV do art. 313 do CPP foi revogado, mas seu conteúdo migrou para o inciso III, com acréscimo de outras possíveis vítimas de violência doméstica e familiar, quais sejam a criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência.

Lima (2011) aduz que como a redação do art. 313 não faz distinção quanto à natureza da pena do crime doloso, deve-se entender que, independentemente de o crime ser punido com reclusão ou detenção, a prisão preventiva pode ser adotada como medida de ultima ratio no sentido de compelir o agente a observância das medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340/2006, mas desde que presentes um dos fundamentos que autorizam a prisão preventiva, constantes no art. 312 do CPP (garantia da ordem pública, econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal).

Não corroboramos desse entendimento, pois para que seja decretada a prisão preventiva em situações que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher, o inciso III não precisa ser lido em conjunto com o teor do caput do art. 313 do CPP, que expressamente faz menção aos termos do art. 312 do mesmo diploma. Aqui, não existe essa condicionante, diante dos critérios de política criminal que permite que uma lei específica disponha sobre institutos processuais penais de forma diferenciada.

A Política Criminal concebe um conjunto de critérios determinantes de uma luta contra o delito, integrando o conjunto de atividades empíricas organizadas e ordenadas para a proteção de indivíduos e da sociedade para a sua prevenção. Manifesta em uma série de instrumentos que devem ser associados à produção presente ou futura do delito de forma a evitar que este se produza ou se reitere, demarcando-se no contexto do conceito de pessoa, especialmente no que se refere dignidade e direitos fundamentais (SILVA-SANCHEZ, 2009).

Aplicando-se a prisão preventiva nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher como a Lei Maria da Penha prevê, há uma perfeita adequação do próprio sentido da lei, com os critérios e finalidades buscadas pela Política Criminal. A razão de ser da lei, ao criar esses mecanismos para coibir as formas de violência em seus âmbitos doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo, está na tutela específica da mulher em razão do gênero. Os componentes da sociedade devem cobrar do Estado a sua atuação efetiva na implementação de medidas que promovam a extinção da violência doméstica na sociedade. A função do Estado é assegurar proteção à família, segundo as necessidades dos membros que a integram e não vedar essa proteção.

Ademais, cabe a Política Criminal eleger interesses e ideias diretivas do tratamento reservado aos vícios sociais que é o crime, elaborando estratégias para seu combate, bem como incrementar a execução dessas estratégias, assumindo papel importante desde o momento da elaboração de uma lei, aplicação e execução (ROCHA, 2002).

Mesmo sendo a prisão a última das hipóteses de incidência no status libertatis do indivíduo (de acordo com a essência da nova lei de prisão, tem-se em primeiro plano a liberdade do indivíduo, em segundo a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão e, por último, a decretação da prisão), a Lei Maria da Penha autoriza, como já se viu, a decretação de ofício da prisão preventiva durante o inquérito policial enquanto essa mesma hipótese é vedada pelo CPP. Mas, por critérios de política criminal, defende-se que uma lei específica, que é a Lei Maria da Penha, pode dispor sobre institutos processuais penais de forma diferenciada. Dessa forma, não haveria necessidade de se aguardar a fase processual para que a prisão fosse decretada. As características trazidas pelo CPP para decretação da prisão preventiva não se aplica nessa lei específica, pois ela traz uma proteção em relação à vítima.

A Lei 11.340/2006 é especial. Assim, não se aplica a lei posterior (CPP) que “revogou” a lei especial (Lei Maria da Penha) que dispõe em sentido contrário, pois a lei especial prevalece sobre a lei geral. Aplica-se a norma especial, seja ela mais grave ou não. A Lei Maria da Penha não precisa ir de encontro com a lei geral. A regra geral não vai se aplicar a norma especial, não em razão do principio da posterioridade e sim em razão do princípio da especialidade, para se atender os critérios de Política Criminal.



LIMA, Renato Brasileiro de. Nova Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.

MOREIRA, Romulo de Andrade. A Lei Maria da Penha e suas inconstitucionalidades. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10291. Acesso em: 02 de set. de 2011.

ROCHA, Fernando A. N. Galvão. Política Criminal. Política criminal. 2. ed. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2002. Capítulo I – Noções preliminares. Material da 1ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Ciências Penais - Universidade Anhanguera-Uniderp - REDE LFG.

SILVA-SANCHEZ, Jesús-Maria. Reflexões sobre as bases da Política Criminal. In: Panóptica. Vitória, ano 2, n. 14, nov.08/fev.09.
Disponível em: <http://www.panoptica.org/novfev2009/PANOPTICA_014_VI_111_121>. Acesso em: 02 de set. de 2011.

8 comentários:

  1. Não concordo com tua posição. Independentemente dos critérios de política criminal, a prisão preventiva, em qualquer hipótese, só pode ser decretada se observados os pressupostos do art. 312 do CPP. Isso já era pacífico, antes mesmo da reforma. E nem poderia ser de outro modo. Uma prisão preventiva, sendo instrumento de ultima ratio, não pode ser imposta sem qualquer fundamento. E os fundamentos estão elencados no art. 312. Sempre defendi essa tese. Não há critério de política criminal, que se orienta para o controle da criminalidade, que possa se sobrepor aos princípios elementares do Estado democrático, entre os quais o da intervenção mínima e do devido processo legal. Se você for ler o que o direito americano, que é muito mais rigoroso que o nosso, diz sobre o princípio do devido processo legal, poderá se convencer que decretar uma prisão sem pressuposto de validade é um atentado a preceitos fundamentais da Constituição. O devido processo legal impõe que a ordem jurídica seja coerente (veja sobre isso, Dworkin, O império da justiça, tradução brasileira, editora Martins Fontes) e só será coerente se observar os princípios que a orientam. Mesmo que uma lei especial disponha de modo contrário, há sempre a necessidade de observância desses preceitos. A lei especial poderá até dispensar formalidades, mas não todas. Não se trata mais de confrontar a lei especial à lei geral, mas, sim, à própria Constituição.

    ResponderExcluir
  2. Sigo esse entendimento porque acho que a lei especial, nesse caso a Lei Maria da Penha, deve sempre predominar em relação a lei geral, que é o CPP. A Lei Maria da Penha, permite a prisão na fase de Inquérito. Já o CPP não. Então o que fazemos? Vamos esperar tramitar o processo para que a prisão seja decretada? Até lá, a mulher pode até estar morta! Acho que Lei Maria da Penha deve ser seguida, nos termos do art. 20. Juarez, pode predominar isso na doutrina, mas, na prática, ainda bem que não. Coitada das mulheres.

    ResponderExcluir
  3. Se a prisão for decretada sem obedecer a qualquer pressuposto, haverá uma antecipação de pena, o que viola o princípio da presunção de inocência. Afinal de que vale esse princípio? Para nada?

    ResponderExcluir
  4. Sempre defendi isso e não será agora que vou mudar. Quanto a decretar na fase do inquérito, até pode ser, desde que obedecidos os requisitos dos arts. 311 e 312, que dão respaldo à fundamentação. O juiz não pode decretar prisão sem fundamento. Viola inclusive a Constituição em outro ponto, que diz que todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas (CF, art. 93, IX). Uma lei especial não pode contrariar a Constituição, daí vigorar, aqui, a chamada interpretação conforme a Constituição, que foi desenvolvida na Corte Constitucional da Alemanha e hoje se estendeu a todos os países. Ademais, o CPP deveria vedar a decretação de prisão ex officio, porque isso antecipa a decisão. O juiz que decreta a prisão não pode julgar, está comprometido com a causa. Não vejo mal algum que o juiz, para a decretar a prisão, tenha que ser provocado pelo Ministério Público. O CPP até, de uma forma esdrúxula, permite que a autoridade policial represente pela prisão, o que uma excrescência. A polícia não deverá ter essa prerrogativa. Agora, enfrentando a questão da revogação ou não da Lei Maria da Pena, entendo que, como a alteração proposta no CPP também se refere aos casos de violência doméstica (art. 313, III), as novas regras também se estenderam aos casos previstos na legislação especial. Não deve impressionar o argumento de que, com isso, as mulheres ficariam desprotegidas. Desprotegidas por que? Porque o juiz não pode decretar de ofício a prisão? Mas o juiz não é órgão da persecução penal, deve, assim, praticar atos de jurisdição mediante provocação da parte. A mulher, que estiver sendo ameaçada ou agredida deve ir à polícia ou ao Ministério Público e pedir providências. Se esses órgãos entenderem cabível a prisão preventiva, no âmbito da investigação, que, respectivamente, por ela representem ou a requeiram. Nada de mais. Precisamos acabar de vez com a figura do juiz investigador. Uma das grandes conquistas do direito processual penal europeu foi justamente a nítida separação entre o juiz e os órgãos da persecução penal. Isso garante a imparcialidade do Judiciário, pressuposto de um Estado de Direito.

    ResponderExcluir
  5. Sim, claro. Só acho que predomina a Lei Maria da Penha sobre o CPP nesses casos de lei de gênero. Se não fosse assim, pra que então essa lei? Afinal, a Lei Maria da Penha conta com 46 artigos, sendo que somente 4 (salvo o engano), são de ordem penal. Não podemos perder mais um artigo. Rs. De acordo com a Profa. Alice Bianchini, tal posicionamento é respaldado pelas estatísticas, as quais demonstram o elevadíssimo índice de homicídios, dentre outras violências, praticadas por homens cuja vítima mulher mantinha ou manteve com ele uma relação íntima de afeto. Como vc mesmo disse, sempre defendi isso e não será agora que vou mudar. Rs.

    ResponderExcluir
  6. Iara, concordo com seu posicionamento, apesar de respeitar a posição do Juarez.
    Atualmente alguns tribunais tem entendido que cabe a aplicação da Lei Maria da Penha no caso de violência doméstica praticada contra os homens, sendo assim entendo que muitos doutrinadores irão mudar seus posicionamentos com relação a Lei Maria da Penha, sinceramente percebo que alguns acham que não foi respeitado o principio da igualdade pelo fato do homem não dispor do mesmo tipo de proteção específica. Parabéns pelo artigo. Abraços, Ademilda

    ResponderExcluir
  7. Ora, os dois pensamentos podem muito bem se coadunar. Se o indivíduo descumprir anterior imposição de medida de urgência, estar-se-á diante de uma das previsões legais para a decretação da medida preventiva: a garantia da ordem pública, para evitar que o agressor continue molestando a vítima, ou seja, que continue delinquindo, resguardando, assim, a ordem pública. Se o agente, inobstante advertido por ordem judicial das suas proibições, torna a importunar a vítima, é forte indicativo de que não pretende cessar a violência, justificando, assim, a necessidade de seu encarceramento cautelar.

    ResponderExcluir
  8. Muito se discute qual destes dispositivos legais deve prevalecer. Se a nova redação do art. 311 do CPP, dada pela Lei 12.403/11, que prestigia o sistema acusatório para que o juiz, na fase de inquérito, não decrete de ofício a prisão preventiva do indiciado, já que o juiz deve ter uma posição equidistante não se contaminando com a prova; ou, se perdura a redação integral do art. 20 da Lei Maria da Penha, que permite ao juiz decretar a prisão preventiva, mesmo sem requerimento do MP, da vítima ou assistente de acusação, entendendo que, na ponderação de interesses, há de preponderar a norma de proteção integral à mulher em situação de risco (art. 4º, da Lei 11.340/06).
    Ora, se analisarmos bem, não há nenhum confronto entre o sistema acusatório (nova redação do art. 311 do CPP) e o princípio de proteção integral à mulher em situação de risco (questão de política criminal), até porque nenhum deles deve prevalecer em detrimento do outro. Pois, inobstante o fato de que o art. 20 da Lei Maria da Penha tenha obedecido à sistemática processual vigente à época de sua elaboração (conforme antiga redação do art. 311 do CPP), a prevalência da nova regra processual, de que o juiz não pode decretar de ofício a prisão do indiciado em todos os casos (já que o devido processo legal impõe que a ordem jurídica seja coerente, conforme ensina o Prof. Juarez Tavares, citando Dworkin, in O império da justiça, tradução brasileira, editora Martins Fontes), só vem a consagrar a proteção integral à mulher em razão da independência das Instituições Jurídicas que apoiam e servem à proteção da mulher em situação de risco – o Ministério Público (art. 25 e 26 da LMP) e a Defensoria Pública (art. 28 da LMP) – avaliando estes, na fase inquisitorial, se há mesmo uma situação urgente de risco à mulher (direitos individuais indisponíveis); e, também, sem olvidar o respeito à própria vontade da ofendida, isto, em casos exclusivos de crimes de ação penal privada.
    Assim, no caso de haver sido superada a análise da inexistência de risco à mulher, pelo não requerimento especifico do MP, Defensoria Pública e ofendida pela prisão cautelar do indiciado (optando apenas requerer outras medidas – protetivas ou cautelares), mas, por outro lado, havendo o decreto de prisão cautelar de ofício pelo juiz, surgirá, a partir daí, um novo instituto, não incluso em lei, o da “superproteção à mulher”. O que é um excesso, violando-se o princípio constitucional do devido processo penal.

    ResponderExcluir