sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A mudança do bem jurídico costumes para dignidade sexual alterou a proteção do Estado nos delitos sexuais?




A Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, trouxe algumas modificações, relativas, em parte, ao Código Penal e à Lei de Crimes Hediondos. Antes dessa alteração, o Título VI do Código Penal se denominava “Dos crimes contra os costumes”. Depois, com a entrada em vigor da lei, passou a se chamar “Dos crimes contra a dignidade sexual”. Resumidamente, com a nova lei, procedeu-se à alteração do tipo penal do estupro, que, agora, congrega, em um mesmo dispositivo, as ações anteriormente capituladas como atentado violento ao pudor, bem como à revogação da presunção de violência. Igualmente, foram confeccionados outros tipos penais autônomos e ainda modificada a natureza da ação penal.

Antes, a lei penal não interferia nas relações sexuais normais dos indivíduos, mas reprimia as condutas anormais consideradas graves que afetassem a moral média da sociedade. O foco da proteção jurídica foi mudado. Não se tem em vista a moral média da sociedade, o resguardo dos bons costumes, isto é, o interesse de terceiros, como bem jurídico mais relevante a ser protegido, mas a tutela da dignidade do indivíduo, sob o ponto de vista sexual, em consonância com o perfil do Estado Democrático de Direito. O objeto jurídico recebeu uma nova concepção com a evolução da sociedade. (CAPEZ, 2010)

Houve, realmente, uma harmonia entre o Título VI do Código Penal com a CF/88. Na verdade, a proteção à dignidade sexual decorre do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto na própria Constituição, considerado como um postulado ativo e garantidor de direitos e deveres do ser humano, desde sua liberdade sexual, sua integridade física, sua vida, moral, honra, etc.

O art. 1º, inciso III da CF/88, afirma que o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

Esse Princípio, conforme Dias (2007) “é o Principio mais universal de todos, que se denomina como princípio máximo, ou superprincípio, ou macroprincípio, ou ainda princípio dos princípios”. A Dignidade da Pessoa Humana é muito mais do que os direitos fundamentais, isto por ser anterior e hierarquicamente superior. A razão de existir Estado e das leis é assegurar a dignidade da pessoa humana (MIRANDA, 1996). Respeita-se a dignidade da pessoa quando o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar de igualdade de direitos com os seus semelhantes. (MENDES, et al., 2008).

O princípio da dignidade da pessoa humana tem duas conotações. A primeira, como princípio geral da ordem jurídica, em face da tradição kantiana, de que a ordem jurídica não pode tomar a pessoa como objeto, mas sim como seu sujeito. A segunda, como postulado normativo, que determina a extensão, a limitação e o conteúdo de todas as normas, a fim de ajustá-las à Constituição. Por esses dois significados, se diz que a dignidade da pessoa humana funciona como reconhecimento da pessoa em sua existência individual e em sua função social. Assim, pode ser compreendida a alteração da lei, que quer proteger a pessoa quanto à sua existência e projeção social dessa existência, que não pode ser obtida quando a liberdade de decidir acerca das opções sexuais se vê violada.

Ademais, a alteração também buscou a proteção da moralidade pública sexual, cujos padrões devem pautar a conduta dos indivíduos, de molde a que outros valores de grande valia para o Estado não sejam sobrepujados. (CAPEZ, 2010).

Quando a lei penal alterou a natureza do bem jurídico "costumes" para "dignidade sexual", quis dar nova dimensão à proteção da pessoa, que deixou de ser um mero objeto da moral sexual e passou a dispor, ela mesma, de autonomia para decidir sobre suas opções sexuais. Isso foi feito pela lei.

Dessa forma, a mudança do bem jurídico não alterou a proteção estatal dos delitos sexuais, muito pelo contrário. Não é fator limitador, mas, sim, extensor de proteção ao bem jurídico, diante da tutela maior que é a dignidade da pessoa humana, sob o aspecto sexual, e os direitos a ela inerentes.


CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Especial. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Martires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3 ed. Coimbra: Coimbra, 1996.

*Iara Boldrini Sandes – Advogada e Professora de Direito Penal, Especialista em Ciências Penais. Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter (@IaraBoldrini). Encontre-me no Facebook.

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