quarta-feira, 23 de julho de 2014

Violação dos direitos das crianças e adolescentes. Ação ou reação? Caso Bernardo Boldrini

Artigo publicado na Revista Seleções Jurídicas – COAD. SANDES, Iara Boldrini. Violação dos direitos das crianças e adolescentes. Ação ou reação? Revista Seleções Jurídicas. COAD. Rio de Janeiro, Julho/2014.


Iara Boldrini*

Ultimamente o que mais se comenta nos noticiários da TV e nas redes sociais é sobre o crime brutal sofrido pelo menino Bernardo Boldrini, de 11 anos. Supostamente assassinado pela madrasta, e amiga, com o consentimento/participação ou conhecimento posterior do pai, Bernardo é mais um, dentre as várias crianças, que fazem parte de uma alarmante estatística de crianças e adolescentes vítimas de violência em seus próprios lares.

Sabe-se que, por mais avançado que o Brasil esteja, se comparado há décadas atrás, quanto ao assunto referente aos direitos das crianças e adolescentes, o Estado e a sociedade, como um todo, ainda não são capazes de promover e assegurar de forma plena a proteção devida a que lhe são necessárias.

Vários são os casos em que pais e mães são os responsáveis pelos crimes/acontecimentos de violência e, consequentemente, violação dos direitos de crianças e adolescentes, correspondentes à metade dos casos registrados, conforme dados disponibilizados por Conselhos Tutelares de todo o país, em pesquisa realizada ao Governo Federal.

As violações podem se expressar de diversas formas como agressões físicas (que podem levar a morte), verbais, psicológicas, patrimoniais, ameaças, maus-tratos, negligência, abandono afetivo, patrimonial, intelectual, abuso sexual, dentre outros; podendo, ademais, ocorrer em suas residências, escolas ou nas ruas. A violação dos direitos da criança e adolescente até mesmo se dá por meio de entidades e instituições públicas ou privadas responsáveis pelo controle social, que atuam tanto no controle social formal quanto no controle social informal, e que têm, por dever, resguardá-los.

Os direitos das crianças e adolescentes se tornou um ramo autônomo, formado por um conjunto de meios de proteção com variados diplomas legais e normativos em geral, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecido como ECA, que é um dos diplomas mais expressivos desses direitos, formado pela Constituição Federal, pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, pela Declaração dos Direitos da Criança e por várias Portarias e Resoluções que dispõem sobre variados assuntos que visam à proteção absoluta e integral do menor de dezoito anos.

A Constituição Federal, quando trata da Ordem Social, confere em seu Capítulo VII a proteção à família, a criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso. Referente à criança e ao adolescente, a Constituição avança em sua proteção, fixando diversos direitos fundamentais, reforçados pela Convenção sobre os Direitos da Criança e pelo próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.

De acordo com o artigo 227, caput, da Constituição Federal, é dever da família, da sociedade e do Estado, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Ademais, continua que o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais, bem como assegura, em seu § 3º, o direito a proteção integral a criança e ao adolescente, que abrangerá a proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos; idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, que deverá ser na condição de aprendiz até os dezesseis anos; garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; garantia de acesso do trabalhador adolescente e jovem à escola; garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; obediência aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade; estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado e programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins.

Aliás, como desdobramento dessa proteção especial por parte do Estado, a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente e, inclusive, o Estatuto da Criança e do Adolescente retratou a preocupação mundial com os direitos das crianças e adolescentes, dispondo sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Em seus primeiros artigos, foram-lhes incorporados à doutrina da proteção integral, assim como a necessidade da garantia aos direitos da família, pelo Estado e pela sociedade, com absoluta prioridade.

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata a lei em comento, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de contribuir com o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, que lhes é de direito.

A garantia de prioridade compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

São muitos os direitos e garantias assegurados em toda legislação, mas, será que eles são respeitados/atendidos?

A violação dos direitos consagrados na Constituição Federal, em leis infraconstitucionais, tratados e convenções internacionais se tornam cada vez mais constante e assustadora, pois põem em situação de risco frequente aqueles que mais necessitam de ajuda para sobreviver e ter um desenvolvimento saudável.

A violência, em suas diversas modalidades, não assola somente a classe social mais baixa. Questões vinculadas a dinheiro, herança ou bens materiais de qualquer espécie, vêm sendo motivo, também, de violência contra crianças e adolescentes em classes sociais com poder aquisitivo maior, como pode ter sido o motivo precursor da fatalidade ocorrida com o menino Bernardo Boldrini. Na maioria das vezes, tais violações/delitos não se tornam públicos, ao fim de se manter, perante a sociedade, uma aparência enganosa sobre o que, realmente, ocorre naquele âmbito familiar.

As autoridades públicas, que tem como função ajudar a sociedade que necessita de mecanismos de proteção e instrução, bem como disciplinares, para assegurar a convivência interna de seus membros, garantindo a conformidade dos objetivos eleitos no plano social, devem levar em consideração a palavra da criança. A Convenção sobre os Direitos da Criança, promulgada pelo Brasil em 1990, dispõe regras que foram estabelecidas para que a criança seja ouvida quanto aos assuntos a ela pertinentes, indo de encontro com o princípio da igualdade, estabelecido pela Carta das Nações Unidas, que equipara os direitos das crianças aos dos adultos, colocando-as como membros da sociedade humana.

Os Estados devem assegurar à criança, que for capaz de formar seus próprios pontos de vista, o direito de exprimir suas opiniões livremente sobre todas as matérias atinentes a ela, levando-se devidamente em conta essas opiniões em função da idade e maturidade da criança. Para esse fim, a criança será, em particular, dada a oportunidade de ser ouvida em qualquer procedimento judicial ou administrativo que lhe diga respeito, diretamente ou através de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais do direito. É o que aduz o artigo 12 da Convenção. Parece simples, não? Mas não é. Na prática, na maioria das vezes, as crianças não são ouvidas e são vítimas, acrescente-se, do descaso. Fazendo remissão ao ocorrido com Bernardo, este procurou o próprio Ministério Público (que tem como função a garantia do direito da criança e do adolescente, e, além dos casos em que atua como parte, sempre atuará em procedimentos que digam respeito aos interesses e direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, como fiscal da lei), para relatar o problema que sofria em casa. Ouvido pelo representante do Parquet Ministerial e pelo juiz, estes resolveram dar uma nova oportunidade de aproximação para o pai de Bernardo, com sua nova família constituída, a fim de reconstituírem os laços de afeto, carinho e união àquela família. E deu no que deu. De quem é a culpa?

O próprio Conselho Tutelar, também, seria uma entidade que tem o dever legal de proteger a criança e o adolescente, pois tem como função primordial trazer proteção a estes seres e zelo à observância dos direitos da criança e do adolescente. Ele, juntamente com os Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, completa a rede de proteção já formada pelo Juizado da Infância e Juventude, Ministério Público e Defensoria Pública. Então, onde estava à proteção consagrada dos Conselhos Tutelares e demais, nos lares das crianças e adolescentes vítimas de seus próprios pais?

O Código Civil, em seu artigo 1.638, trabalha com a perda do poder familiar, ao pai ou a mãe que castigar imoderadamente o filho, deixá-lo em abandono, praticar atos contrários à moral e aos bons costumes ou incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo 1.637, do mesmo diploma legal.

Junto à perda, de forma mais branda, se tem a suspensão do poder familiar, como uma forma de penalizar os pais, aos quais lhe são incumbidos o dever de sustento, guarda, educação dos filhos menores e a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

Além disso, o pai e a mãe, enquanto no exercício do poder familiar, são usufrutuários e têm a administração dos bens dos filhos menores sob sua autoridade e, caso arruínem os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente ou o Ministério Público, adotar à medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha, pois a proteção, aliás, é de qualquer arbitrariedade por parte do Estado, da família ou da sociedade, nos termos do artigo 15 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no sentido de que “a criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. Entretanto, podemos dizer que a perda ou suspensão do poder familiar pode ser uma solução para a cessação da violência perpetrada em face das crianças e adolescentes? E se a violência empregada for à morte?

O Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe, brilhantemente, de forma ampla, que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor, ou seja, além da família, deu um papel importante e amplo a toda a sociedade. O tema das violações de direitos das crianças e adolescentes foi introduzido, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 5º, no sentido de que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Tudo isso acomete diretamente na erradicação da violência às crianças e adolescentes?

São muitas perguntas, para poucas respostas. Constantemente, toda carga de responsabilidade, quando a sociedade se depara com crimes violentos ou qualquer tipo de abuso (físico, mental ou sexual) em face de crianças ou adolescentes, ou a qualquer outro tipo de crime que causa ojeriza e repulsa na sociedade, é atribuída ao Direito Penal, juntamente com os Poderes responsáveis para assegurar direitos, garantias, controle, leis, repressão, prevenção, justiça e etc. (Legislativo, Executivo e Judiciário).  
Apesar de haver vedações a qualquer tipo de atentado a direitos fundamentais de crianças e adolescentes, a significância dos números é alta, mesmo com o conjunto de organizações que atuam em defesa e proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes, como, por exemplo, o Ministério Público, Conselho Tutelar, Defensoria Pública, Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente instalados no país a partir da década de 1990 e etc.

Com todo esse aparato constitucional, legal e institucional (só o Estatuto da Criança e do Adolescente, hoje, conta com mais de vinte anos de existência), a convivência familiar é uma máxima elementar dos direitos assegurados à criança e ao adolescente, rompendo com a concepção histórica da institucionalização.

Esse problema é complexo, pois além de suas causas serem múltiplas, o que não se vê - fato inegável – não tem como ser tratado, o índice de falta de notificação ou denúncias aos órgãos competentes é muito elevado. Outro problema é a falta de conhecimento da obrigatoriedade de tal comunicação, que é obrigatória para os profissionais da saúde e educação, e a própria dificuldade de se identificar a ocorrência de práticas de violência.

A efetividade dos mecanismos de denúncia e notificação garante a possibilidade não apenas de atendimento às vítimas, mas, também, de responsabilização e tratamento dos agressores, evitando a impunidade e o ciclo repetitivo da violência.

Deve-se existir mais programas sociais eficazes voltados para a educação. Pois é. Educação. Educação que ensina, orienta e conscientiza famílias carentes não só de instrução intelectual e financeira, mas, também, de afeto. A nossa legislação assegura que qualquer criança ou adolescente que não esteja sob o poder familiar e que não esteja em sua família extensa ou ampliada, mediante guarda ou tutela, poderá ser adotada. E era isso que o menino Bernardo queria. Ser adotado. Queria uma nova família, uma nova vida, uma oportunidade para ser feliz. Ele tinha somente dois sonhos, relatados aos amigos e familiares: tocar o sino da igreja e ter a chave de casa, para poder chegar mais tarde. Triste história. Triste fim.





*Iara Boldrini Sandes – Advogada em São Paulo e Professora de Direito Penal. Assessora e Membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP. Especialista em Ciências Penais. Representante em São Paulo do Instituto Brasileiro de Direito e Política de Segurança Pública – IDESP. Integrante do Corpo Editorial da Revista de Direito e Segurança Pública, do Instituto Brasileiro de Direito e Política de Segurança Pública – IDESP. Autora de obras jurídicas para concursos públicos e OAB.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Perguntas e Respostas: Qual a diferença entre analogia, interpretação analógica e interpretação extensiva?

IARA BOLDRINI*

A analogia, também chamada de integração analógica, suplemento analógico ou aplicação analógica, não é o mesmo que interpretação analógica e interpretação extensiva. Trata-se de três institutos diferentes.

A analogia é uma forma de auto-integração da lei, uma forma de aplicação da norma legal, um método de integração do sistema jurídico, que pressupõe a ausência de lei que discipline especificamente a situação que enseja a extensão de uma norma jurídica de um caso previsto a um caso não previsto, com fundamento na semelhança entre ambos. Como não há norma reguladora para a hipótese, empresta-se uma lei existente aplicada a um caso, para outro similar. Exemplo: em que pese à ausência de previsão legal no procedimento do júri, admite-se a substituição dos debates orais por memoriais, em analogia, ao que ocorre no procedimento comum ordinário (art. 403, § 3º c/c 404 do CPP). Outro exemplo, ainda não pacificado pela doutrina e jurisprudência, seria a hipótese de se aplicar as medidas protetivas (não penais) da Lei Maria da Penha em favor do homem. Escrevemos sobre o assunto: http://atualidadesdodireito.com.br/iaraboldrini/2011/12/20/lei-maria-da-penha-em-favor-do-homem/

Quanto à interpretação analógica, ela é o processo de averiguação do sentido da norma jurídica, valendo-se de elementos fornecidos pela própria lei, através de método de semelhança. Ocorre sempre que o legislador apresenta uma forma casuística (fechada) seguida de uma fórmula genérica (aberta). Exemplo: existe lei para o caso. Existe um rol de exemplos seguido de forma genérica, como o art. 121, § 2º, I do CP - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe - a paga ou promessa de recompensa em si, são exemplos de motivo torpe. O CP dele se utiliza para formar a fórmula casuística e, após, apresenta uma fórmula genérica (“ou por outro motivo torpe”). O legislador fixa um parâmetro para indicar o que pode caracterizar um motivo torpe; art. 121, § 2º, III do CP – ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; art. 121, § 2º, IV do CP – ou outro recurso que dificulte ou torne impossível à defesa do ofendido.

Já a interpretação extensiva, é o processo de extração do autêntico significado da norma, ampliando-se o alcance das palavras legais, a fim de se atender a real finalidade do texto. Nesta, existe uma norma regulando a hipótese, de modo que não se aplica a norma do caso análogo, não mencionando, tal norma, expressamente essa eficácia, devendo o intérprete ampliar seu significado além do que estiver expresso. Exemplo: art. 157,§ 2º, I do CP – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma. Mas, o que é arma? A corrente que prevalece é a que diz que arma é todo instrumento com ou sem finalidade bélica, que serve para o ataque, como revolver, faca de cozinha e etc. – a expressão “arma” foi ampliada o seu alcance, abrangendo até armas impropriamente ditas, como a faca de cozinha.

Portanto, no Direito Penal, em regra, é terminantemente proibida à aplicação da analogia que venha a prejudicar o réu (analogia in malam partem), pois fere o Princípio da Legalidade ou Reserva Legal, uma vez que um fato não definido em Lei como crime estaria sendo considerado como tal. Por exceção, admite-se a analogia que não traga prejuízos ao réu (analogia in bonam partem). Já a interpretação analógica e a interpretação extensiva, são perfeitamente admitidas no Direito Penal.



*Iara Boldrini Sandes – Advogada em São Paulo e Professora de Direito Penal. Assessora e Membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP. Especialista em Ciências Penais. Representante em São Paulo do Instituto Brasileiro de Direito e Política de Segurança Pública – IDESP. Integrante do Corpo Editorial da Revista de Direito e Segurança Pública, do Instituto Brasileiro de Direito e Política de Segurança Pública – IDESP. Autora de obras jurídicas para concursos públicos e OAB.