terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Responsabilidade penal da pessoa jurídica. É possível?

IARA BOLDRINI SANDES*


Há bastante controvérsia na doutrina e jurisprudência sobre a possibilidade ou não de se responsabilizar a pessoa jurídica penalmente.

A CF/88 trouxe a proteção ao meio ambiente, tutelando-o como bem jurídico autônomo, merecedor de proteção, no sentido de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225). Logo em seguida, o § 3º do mesmo artigo previu que as condutas e atividadesconsideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. Surgiu-se, então, a criminalização das condutas lesivas, causadas ao meio ambiente. Só que tal previsão tornou-se inócua, diante da não previsão infraconstitucional para regulamentar o dispositivo. Dez anos depois, em 1998, a Lei 9.605 regulamentou o assunto, no sentido de que as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme disposto na lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade (art. 3º). A previsão constitucional era de eficácia limitada, que somente ganhou aplicabilidade quando foi regulamentada pela Lei.

Existem várias correntes doutrinárias sobre o assunto. A primeira não é a favor da responsabilização da pessoa jurídica, pois esta não pratica crime, tendo existência fictícia e, portanto, não pode delinqüir (“societas delinquere non potest”) – Teoria da Ficção, de Savigny. A segunda corrente é a favor dessa responsabilização, praticando crime a pessoa jurídica, de acordo com o previsto na CF/88 e na Lei de Crimes Ambientais (“societas delinquere potest”) – Teoria da Realidade ou da Personalidade Real – Otto Gierke. Já a terceira corrente, que é adotada pelo STJ, aduz no sentido de que a pessoa jurídica não pode praticar crime, mas pode ser responsabilizada penalmente nas infrações contra o meio ambiente, observando-se o princípio da dupla imputação, ou seja, não pode a pessoa jurídica ser sujeito passivo somente da ação penal, devendo ser, juntamente, com a pessoa física que praticou o crime.

Na Alemanha, surgiu uma linha de entendimento que trata o assunto como imposição de sanções quase penais as empresas, pois quando o juiz, ao aplicar tais medidas, não ignora que as pessoas jurídicas são incapazes de conduta e de culpabilidade, mas entende essa aplicação como uma forma de combate a criminalidade moderna que é cometida por meio das entidades coletivas (defensores desse entendimento: Bernd Schunemann, Winfried Hassemer e Hans Heinrich Jescheck) (CONSTANTINO, 2001). Winfried Hassemer propõe o chamado Direito de Intervenção, seguida no Brasil por Helena Lobo da Costa, que se posiciona entre o direito civil e o direito administrativo, estando fora do direito penal, que seria o responsável por abarcar as infrações contra bens jurídicos supraindividuais ou sociais, apontando como vantagens as possibilidades de se mitigar as regras de imputação e as garantias processuais, tendo em vista que, entre as sanções cominadas, jamais estaria a pena de prisão, reservada pelo direito penal à criminalidade de massa e às ofensas aos bens jurídicos individuais (COSTA et al. 2003). No Brasil, existe também um posicionamento que não admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica, aduzindo que essa responsabilidade da pessoa jurídica não é propriamente penal, no sentido estrito da palavra e sim, sancionadora. Seria uma hipótese de Direito Judicial Sancionador (GOMES, 2011). O parágrafo único do art. 3º da Lei 9.605/98 diz que a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato. Vê-se aqui a teoria da dupla imputação, ou seja, deve-se compor como sujeito passivo da ação penal a pessoa jurídica e a pessoa dentro da empresa que praticou o crime em seu nome e em seu benefício. Nesse sentido, STJ, no REsp 564.960.

Houve também na Lei 9.605/98 a consagração da chamada teoria da responsabilidade penal por ricochete, de empréstimo, subseqüente ou por procuração, ou seja, a responsabilidade penal da pessoa jurídica depende da prática de um fato punível por alguma pessoa física, que atua em seu nome e em seu benefício e, por reflexo, a pessoa jurídica acaba também sendo processada, desde que preenchidos os requisitos legais (GOMES, 2011).

Preponderou no Brasil a primeira corrente (incapacidade da pessoa jurídica para ser responsabilizada penalmente), mas, hoje, o terceiro entendimento vem prevalecendo e corrobora-se aqui deste entendimento. As penas, de acordo com a Lei de Crimes Ambientais são: multas, prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica. De acordo com o Direito Empresarial, a pessoa jurídica tem capacidade para contratar, cumprir e descumprir contratos, ou seja, possui autonomia, poder de decisão. E, como não se pode entender que, dentre seu rol de autonomia, decorrente de suas competências, não poderá haver o cometimento de crimes? Não se pode desconsiderar isso, punindo-se as condutas consideradas lesivas ao meio ambiente, após o devido processo legal, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa. A tutela penal torna-se necessária e imprescindível para o controle e combate a esses tipos de crimes, que afetam um bem jurídico tutelado constitucionalmente, que é o meio ambiente, de forma que seu efeito não só intimidativo e educativo se cumpram, bem como o repressivo. Trata-se de uma prevenção geral e especial. Os efeitos criminais são completamente diferentes dos, no mais das vezes, ineficazes meios de atuação civis e administrativos. Torna-se efetivamente eficaz, pois atua intervindo no sistema do lucro das empresas.

Não se trata somente da proteção ao meio ambiente sob a forma de um interesse individual ou público em sentido estrito, mas, sim, da proteção de um interesse difuso, indivisível, pertencente a toda a coletividade, pois se considera crime não somente a violação ao bem jurídico individual, mas também a violação ao interesse difuso ou coletivo (CAPEZ, 2011).

Dessa forma, entende-se possível o cabimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica nos preceitos estabelecidos pelo art. 225, § 3º da CF/88, art. 3 e § único da Lei 9.605/98, nos limites da teoria da dupla imputação (não se atribui à pessoa jurídica a capacidade de cometer crimes, mas, sim, uma responsabilidade penal como consequência da prática da infração pela pessoa física que atua como seu dirigente, em seu nome ou em seu interesse), teoria da responsabilidade penal por ricochete (a pessoa física é incriminada primeiramente e, por reflexo, a pessoa jurídica), bem como de acordo com os limites traçados pelo STJ, no REsp 564.960, no sentido de que a violação decorra de deliberação do ente coletivo, o autor material da infração seja vinculado à pessoa jurídica, a infração praticada se dê no interesse ou benefício da pessoa jurídica, o autor tenha agido no amparo dela e que a atuação ocorra na esfera de atividades da pessoa jurídica.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Especial. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CONSTANTINO, Carlos Ernani. Delitos ecológicos: a lei ambiental comentada artigo por artigo. São Paulo: Atlas, 2001.

COSTA, Helena Regina Lobo da; ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: um caso de aplicação de pena com fundamento no “princípio do porque sim”. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 11, nº 133, dezembro 2003.

GOMES, Luiz Flávio. Responsabilidade “penal” da pessoa jurídica.Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20070924110620139. 

*Iara Boldrini Sandes – Advogada e Professora de Direito Penal, Especialista em Ciências Penais. Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter (@IaraBoldrini). Encontre-me no Facebook.