sábado, 7 de janeiro de 2012

LEI MARIA DA PENHA EM FAVOR DO HOMEM

Artigo publicado no Boletim do IBCCRIM.
Como citar: SANDES, Iara Boldrini. Lei Maria da Penha em Favor do Homem. Boletim IBCCRIM, ano 19, n. 229, Dezembro/2011.
IARA BOLDRINI SANDES*
A Lei Maria da Penha buscou tutelar de forma específica a mulher, vítima de violência doméstica, familiar e de relacionamento íntimo, instituindo tratamento jurídico diverso daquele contido no Código Penal, porque delimita, quanto à sua aplicação, o sujeito passivo das modalidades de agressão, que só pode ser a mulher.
Não se pode deduzir, porém, que a mulher seja a única e exclusiva vítima potencial ou real de violência doméstica, familiar ou de relacionamento íntimo. Também o homem pode sê-lo, tanto empírica quanto normativamente, conforme, aliás, se depreende da redação do § 9º do art. 129 do Código Penal, que não faz restrição a respeito das qualidades de gênero do sujeito passivo, o qual pode abranger ambos os sexos.[1] O que a lei delimita são as medidas de assistência e proteção, as quais, em princípio, são aplicáveis somente à vítima mulher.
Souza traduz, em sua obra, o conceito de sujeito passivo e sujeito ativo, assinalando para este último duas correntes. A lei, em várias partes de seus dispositivos e, especialmente, em seu preâmbulo, deixa claro que o sujeito passivo reconhecido por ela é apenas a mulher. Tanto a mulher que já não mais conviva com a pessoa responsável pela agressão quanto aquela que nunca tenha convivido, mas que tenha mantido ou mantenha uma relação íntima com o agressor ou agressora, podem figurar no polo passivo, não importando que ocorra somente no âmbito doméstico, mas fora dele. Quanto ao sujeito ativo, há divergências. Uma primeira corrente defende que, por tratar-se de crime de gênero cujos fins principais estão voltados para a proteção da mulher vítima de violência, no polo ativo pode figurar apenas o homem e, quando muito, a mulher que, na forma do parágrafo único do art. 5º da Lei, mantenha uma relação homoafetiva com a vítima.[2] Já a segunda corrente, que é a defendida por Souza, juntamente com Gomes e Bianchini,[3] entende que será mais coerente incluir-se como sujeito ativo tanto o homem quanto a mulher. Com isso se dará menos ensejo a possíveis arguições de inconstitucionalidade, pois passa a tratar igualmente homens e mulheres, quando vistos sob a ótica do polo ativo, resguardando a primazia à mulher apenas enquanto vítima. Essa corrente defende que a ênfase principal da lei não está na questão do gênero do agressor, que tanto pode ser homem como mulher.
Aqui, defende-se uma terceira corrente. A Lei deve ser tratada como uma lei de gênero, que se destina a proteger a mulher, em face de sua fragilidade dentro de um contexto histórico, social e cultural. Mas admite-se estender suas medidas protetivas, também, em favor de qualquer pessoa (sujeito passivo), desde que a violência tenha ocorrência dentro de um contexto doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo. Nesse caso, a pessoa a ser protegida pode ser tanto o homem quanto a mulher.
Dias prevê a possibilidade de o sujeito passivo não ser necessariamente a mulher, quando a lei institui mais uma majorante ao crime de lesão corporal em sede de violência doméstica, se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. Justifica que, em se tratando de deficiente físico, como sujeito passivo de uma lesão corporal, a pena será aumentada de um terço, seja aquele homem ou mulher.[4]
A finalidade da posição aqui adotada é considerar como sujeito passivo tanto homem quanto a mulher, independentemente de tratar-se de pessoa portadora de deficiência. Para dar efetividade à lei, no sentido de conferir mais garantias aos sujeitos passivos, a doutrina, a jurisprudência e as autoridades competentes atuam de forma positiva diante das novas necessidades que surgem. A Lei foi criada nos termos do art. 226, § 8º, da CF/88, que inseriu em seu texto a proteção à família, na pessoa de cada um dos que a integram, quanto à criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Não é a entidade familiar, em si, a que o Estado prestará assistência, mas ao marido, à mulher, aos filhos, segundo as necessidades de cada um, até mesmo em contraposição aos outros membros familiares.[5] A sociedade deve cobrar do Estado atuação efetiva na implementação de medidas que promovam a extinção da violência. Em alguns Estados, Varas Especializadas de Violência Contra a Mulher já se encontram em funcionamento para dar efetividade à proteção constitucional, conferindo ao Legislativo a possibilidade de criação de norma específica, capaz de garantir as condições para chancelar determinadas situações cautelares a serem providas pelo Judiciário. O Estado passa a atuar no combate à violência contra a mulher, propondo alternativas para essas demandas; alternativas estas, não só para as mulheres vítimas de violência e que precisam de proteção, mas também para todos os membros que integram a família, sob o respeito do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
É imperioso que se estendam os benefícios da Lei aos discriminados que solicitarem proteção ao Judiciário, caso a caso, pois há interesse de agir, e o Judiciário não pode negar a prestação jurisdicional. Ademais, será que existe a possibilidade de aplicação analógica das medidas protetivas da Lei em favor do homem? Ou será caso de uma interpretação extensiva? A analogia no Direito Penal é proibida quando for utilizada de modo a prejudicar o agente, seja ampliando o conteúdo dos tipos penais incriminadores, a fim de abranger hipóteses não previstas expressamente pelo legislador, uma vez que um fato não definido em lei como crime estaria sendo considerado como tal, seja estendendo seus elementos para além de sua própria natureza. Ainda que o fato possa ser moralmente reprovável, ou que os enunciados normativos sejam dúbios ou insuficientes em face dos objetivos sociais ou morais, o direito não pode servir de instrumento da política, da ideologia ou mesmo dos sentimentos; só pode atuar de conformidade com os estritos limites da legalidade e conforme a natureza das coisas. Atendendo a uma forma precisa de interpretação, nada impede que as medidas protetivas da lei sejam aplicadas. Isto porque se as medidas de proteção de natureza não penal devem englobar a pessoa, como tal, será possível estender seus benefícios igualmente a todos os que se situem no mesmo contexto de proteção.
Tais medidas não têm um caráter efetivamente penal, mas sim civil, com abrangência no direito de família e no direito administrativo, setores esses que admitem uma interpretação extensiva ou até mesmo uma criação analógica com mais facilidade do que no Direito Penal. Não há impedimento que faça com que o Judiciário não atenda a quem está sendo ameaçado ou lesado de seus direitos. A primeira sentença proferida nesse sentido foi em Cuiabá, Mato Grosso, e, em decorrência dela, no mesmo Estado, surgiu posicionamento jurisprudencial que caminhou de forma inovadora, quando confirma e justifica até uma proteção futura para as partes, ao coibir, desde logo, com as medidas protetivas da Lei, possíveis violências e ameaças que possam surgir. Há, também, decisão em Minas Gerais, pronunciamento do Ministério Público de Santa Catarina, decisão do Juiz da mesma localidade, no Espírito Santo e no Rio Grande do Sul. Hoje, a extensão de aplicação da Lei é bem significativa. No Rio Grande do Sul, foi aplicada a Lei em favor de dois homens que mantinham uma união homoafetiva. As medidas foram deferidas a um dos homens, porque sofria ameaças de seu companheiro. Na decisão do Espírito Santo, a juíza argumentou que a sua decisão fora tomada com base no poder geral de cautela do juiz. “Se ao juiz coubesse uma aplicação fria da lei, sem uma análise do caso concreto, bastaria ele lançar o problema para um computador resolvê-lo matematicamente", justificou a magistrada.[6] O poder geral de cautela tem como finalidade afastar situações periclitantes e perigosas que poderiam pôr em risco o desenvolvimento ou o resultado finalístico do processo no qual se busca a satisfação material do direito pleiteado, sempre que presentes o fumus boni iuris e o periculum damnum irreparabile, a determinado caso fático, cuja previsão específica escapou ao legislador.[7]
Na Espanha, a lei sobre violência familiar tem gerado muita discussão e polêmica quanto à sua constitucionalidade, tal como a Lei Maria da Penha. A lei espanhola prevê penas mais rigorosas para homens que agridem mulheres. Mas, ao contrário, para as mulheres que agridem homens prevê também punição, só que menos rigorosa. Lá, diferentemente do Brasil, há legislação aplicável aos casos de violência contra o homem. Na ausência de lei aplicável, por que não se valer, aqui, de uma interpretação extensiva ou mesmo de uma analogia para a proteção civil dos necessitados? À primeira vista, poder-se-ia tratar de criação analógica, porque a lei não prevê expressamente que o homem seja beneficiário de tais medidas. Nesse caso, tomando-se em conta a semelhança de situações, criar-se-ia uma norma capaz de abarcá-las quando se tratasse de uma violência praticada contra o homem. Mas será que se trata mesmo da criação de uma norma? Na criação analógica, a norma não existe; só existe a situação de fato não regulada normativamente. Então, o julgador cria a norma, em face da semelhança de situações e a aplica ao caso concreto. No âmbito do contexto situado pela Lei, há referência a uma situação de fato semelhante: o ambiente familiar, doméstico ou de relacionamento íntimo, no qual se desenvolve a violência. Por outro lado, a norma do art. 226, § 8º, da CF/88 confere proteção não apenas à mulher, como também a todos os membros de uma família. Vê-se, assim, que as medidas de proteção instituídas pela Lei são consequência de uma regulamentação constitucional. A Lei nada mais faz do que tornar eficaz o enunciado constitucional, conferindo-lhe aplicabilidade. Com isso, a norma constitucional deixa de ser de eficácia contida e passa a tornar-se de eficácia plena com relação à mulher.
Normalmente, diz-se que, na analogia, o elemento novo (no caso, o homem) não está compreendido como elemento positivo da norma (no caso, a mulher), mas sim como seu elemento negativo, enquanto que, na interpretação extensiva, seria meramente um elemento neutro. Hassemer afirma categoricamente que “aplicar o direito é sempre um processo analógico. Uma norma jurídica não pode se estender sem recorrer a seu sentido, ao tertium comparationis, que serve de união dos diversos casos e possibilita sua comparação como casos da norma”.[8]  Na visão tradicional, afirma-se que a proibição da analogia visa a comparar o fato com a descrição literal da lei, vedando que essa descrição literal seja ampliada. Mas, como leciona Hassemer, a descrição literal não pode ser apreendida sem que esteja associada ao sentido da norma. Diz ele que, “uma vez que qualquer aplicação do direito é analogia e uma vez que não é possível entender a norma, salvo que se trate de uma questão trivial, se se renuncia ao tertium comparationis, não há possibilidade de assinalar limites claros entre interpretação permitida e analogia proibida”.[9] Tavares assinala que “no fundo, todo processo de interpretação é um procedimento analógico. Negar esse fato não ajuda em nada para limitar o poder estatal. Pelo contrário, se se deixa a proteção vinculada unicamente ao plano conceitual abstrato, converte-se em letra morta o princípio da legalidade”.[10] Atendendo a isso, propõe Hassemer que a chamada proibição de analogia deve ser reservada àqueles casos em que se afetem direitos do acusado, em seu âmbito de liberdade, pois, então, estaria, nesse caso, também vedada uma interpretação extensiva. Uma vez que não se trate de restringir direitos subjetivos de liberdade do réu, mas conferir proteção ao homem, vítima de violência, tanto a analogia quanto a interpretação extensiva estariam permitidas. Haverá analogia se se entender que a Lei deva ser interpretada em seus estritos limites literais, que inclui apenas a mulher como sua beneficiária; nesse caso, a inclusão do homem, como elemento positivo da norma implica um nítido procedimento analógico. Haverá, porém, interpretação extensiva, se entender que a Lei deva ser interpretada de acordo com seu sentido constitucional, estendendo sua proteção também ao homem. O sentido conferido pela CF/88 à proteção dos membros familiares conduziria à extensão da norma em favor do homem como consequência de um processo comparativo interpretativo, ainda que analógico. Mas como as medidas são de caráter civil e não penal, não estão vedadas ao serem estendidas ao homem. É garantir segurança a esses indivíduos, cessando futuras ameaças, lesões e até a morte. O que se busca é que, por meio do deferimento, a vítima se resguarde do bem maior que ela tem que é a vida.
Dessa forma, pode-se deduzir que a aplicação das medidas protetivas cautelares em favor do homem não implica inseri-las no procedimento específico criminal, pois, então, estar-se-ia diante de uma interpretação criadora, o que conduziria a uma analogia in malam partem. Se, no curso de um julgamento de um processo principal, aplicar-se, por exemplo, a Lei em favor do homem e em desfavor da mulher em todos seus efeitos, mais especificamente, retirando-lhe a possibilidade de composição civil dos danos, a transação penal com a possibilidade de cumprimento de penas não privativas de liberdade e a suspensão condicional do processo, estar-se-ão restringindo direitos relativos aos autores de crimes de menor potencial ofensivo, o que deve ser vedado, porque a inserção de um não legitimado de tal tutela não pode eliminar as garantias e prerrogativas conferidas pela Lei 9.099/95. Somente no caso da violência doméstica tratada no art. 129, § 9º, do Código Penal, que não limita os sujeitos passivos, é que se pode admitir uma exceção à regra da proibição da analogia ou da chamada interpretação extensiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Abrangência da definição de violência doméstica. Boletim IBCCRIM, ano XVII, n. 198, Maio/2009.
CARPENA, Márcio Louzada. Do Processo Cautelar Moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Competência Criminal da Lei de Violência Contra a Mulher. Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20060904210631861.
HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Barcelona: Bosch, 1984.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. v. 2.
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários a Lei de Combate à Violência Contra a Mulher. Curitiba: Juruá, 2007.
TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidade y jurisprudência. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. Madrid: INEJ, 1987.


[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Abrangência da definição de violência doméstica. Boletim IBCCRIM, ano XVII, n. 198, Maio/2009; da mesma forma, PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos tribunais, 2010, v. 2, p. 142.
[2] SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários a Lei de Combate à Violência Contra a Mulher. Curitiba: Juruá, 2007, p. 46.
[3] GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Competência Criminal da Lei de Violência Contra a Mulher. Disponível em: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20060904210631861. Acesso em 22.02.2009.
[4] DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 42.
[5] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 854.
[7] CARPENA, Márcio Louzada. Do Processo Cautelar Moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 162.
[8] HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Madrid, 1984, p. 336.
[9] Idem.
[10] TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidade y jurisprudencia, Madrid, 1987, p. 758.


*Iara Boldrini Sandes – Advogada e Professora de Direito Penal, Especialista em Ciências Penais. Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter (@IaraBoldrini). Encontre-me no Facebook.