sábado, 20 de agosto de 2011

Tolerância social não descriminaliza manutenção de casa de prostituição.

Essa semana foi publicada a notícia abaixo no site do STJ, afirmando que a tolerância social da manutenção da casa de prostituição, delito previsto no tipo legal de crime do art. 229 do Código Penal, não tem o condão de descaracterizar a ilicitude da conduta.

Na realidade, a tese defensiva seguiu a linha do princípio da adequação social, segundo o qual, para que uma conduta seja considerada típica, não basta que ela tenha relavância jurídica, devendo ter, também, relevância social.

Em outras palavras e a contrario sensu, se determinada conduta prevista em um tipo penal for aceita no meio social em que é praticada, a conduta passa a não ter relevânciam justamente em razão de sua aceitação social, sendo, assim, uma conduta socialmente adequada, e, portanto, penalmente irrelevante.

O relator entendeu que mesmo que uma conduta seja socialmente adequada, isso não lhe exclui a ilicitude.

Data venia, na realidade a incidência do princípio da adequação social gera reflexos na própria tipicidade formal da conduta, e, não, na sua ilicitude. Portanto, seria mais técnico afirmar que a adequação social da conduta não lhe exclui a tipicidade formal.

Ademais, com razão o relator ao afirmar que a aceitação social da conduta delituosa não significa a descriminalização da conduta. Com efeito, é princípio basilar do Direito que um lei apenas se revoga por outra. Cai-se naquela antiga discussão se o costume pode revogar uma lei.

Como é consabido, embora o costume seja fonte de conhecimento mediata do Direito Penal, é mera fonte de interpretação, jamais podendo criar e revogar tipos legais de crime, em homenagem ao princípio da legalidade penal positivado no art. 5º, XXXIX da Constituição Republicana de 1988, bem como no art. 1º do Código Penal.

Note-se que esse mesmo entendimento é adotado pelo STF, conforme ressai do julgamento da ordem de habeas corpus 104.467, publicada no Informativo 615, transcrito abaixo.


“Tolerância social não descriminaliza manutenção de casa de prostituição

Manter estabelecimento em que ocorra exploração sexual é crime, ainda que haja tolerância social e leniência das autoridades. O entendimento é do desembargador convocado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Adilson Macabu e reforma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) que, no julgamento de apelação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), desconsiderou o tipo penal. 
Tanto o juízo de primeiro grau quanto o TJRS julgaram que “à sociedade civil é reconhecida a prerrogativa de descriminalização do tipo penal”. No caso, uma mulher mantinha outras mulheres em sua casa, fornecendo abrigo, alimentação, cobrando dos clientes o aluguel do quarto e vendendo bebidas alcoólicas. O TJRS entendeu que o fato se enquadraria no artigo 228 do Código Penal (favorecimento à prostituição). 

A conduta de manutenção de casa de prostituição está tipificada no artigo 229 do Código Penal, porém, o TJRS entendeu que esse tipo penal não é mais eficaz, por conta da tolerância social e da leniência das autoridades para com a “prostituição institucionalizada” (acompanhantes, massagistas etc.), que, embora tenha publicidade explícita, não sofre nenhum tipo de reprimenda das autoridades.
 

No recurso ao STJ, o MPRS alegou que a decisão do tribunal gaúcho viola o artigo 229 e vai de encontro à jurisprudência firmada pelo Tribunal superior. Argumentou, ainda, que “a tolerância ou desuso não se apresentam como causa de despenalização”.
 

Alinhado às alegações do MP, o desembargador convocado Adilson Vieira Macabu reafirmou o entendimento do STJ de que a tolerância social ou mesmo das autoridades públicas e policiais não descriminaliza a conduta tipificada no artigo 229 do CP. Sublinhou, ainda, que a lei penal só pode ser suprimida por outra lei penal que a revogue; a indiferença ou tolerância social não excluem a ilicitude.
 

Por esse motivo, o magistrado reconheceu a conduta como típica, cassando o acórdão estadual. Dessa forma, o processo retorna ao primeiro grau para que outra sentença seja proferida.”

INFORMATIVO 615
PRIMEIRA TURMA
Art. 229 do CP e princípio da adequação social

“Não compete ao órgão julgador descriminalizar conduta tipificada formal e materialmente pela legislação penal. Com esse entendimento, a 1ª Turmaindeferiu habeas corpus impetrado em favor de condenados pela prática do crime descrito na antiga redação do art. 229 do CP
 [“Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja ou não intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”]. A defesa sustentava que, de acordo com os princípios da fragmentariedade e da adequação social, a conduta perpetrada seria materialmente atípica, visto que, conforme alegado, o caráter criminoso do fato estaria superado, por força dos costumes. Aduziu-se, inicialmente, que os bens jurídicos protegidos pela norma em questão seriam relevantes, razão pela qual imprescindível a tutela penal. Ademais, destacou-se que a alteração legislativa promovida pela Lei 12.015/2009 teria mantido a tipicidade da conduta imputada aos pacientes. Por fim, afirmou-se que caberia somente ao legislador o papel de revogar ou modificar a lei penal em vigor, de modo que inaplicável o princípio da adequação social ao caso. HC 104467/RS, rel. Min. Cármen Lúcia, 8.2.2011. (HC-104467).”

Fonte: http://www.tvhabib.com - Prof. Gabriel Habib

sábado, 13 de agosto de 2011

O que é o RDD?

O Regime Disciplinar Diferenciado – RDD é uma sanção disciplinar sujeitada ao preso provisório ou condenado, decorrente da prática de fato previsto como crime doloso, que constitui falta grave, ocasionando subversão da ordem ou disciplina internas, sem a necessidade de trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Não é regime de cumprimento de pena. É a espécie mais drástica de sanção disciplinar (devendo ser utilizada como ultima ratio), restringindo, como nenhuma outra, a liberdade de locomoção do preso e alguns dos seus direitos.

O RDD foi introduzido pela Lei 10.792/2003 (que alterou a LEP e o CPP), e encontra-se no art. 52 da LEP.

Características:

a) duração máxima de 360 dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de 1/6 da pena aplicada (quando se tratar de preso provisório, sem pena aplicada, levará em consideração a pena mínima cominada)

b) recolhimento em cela individual (Art. 45. Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar. § 1º As sanções não poderão colocar em perigo a integridade física e moral do condenado. § 2º É vedado o emprego de cela escura. § 3º São vedadas as sanções coletivas);

c) visitas semanais de 2 pessoas, sem contar as crianças, com duração de 2 horas;

A expressão “sem contar crianças” quer excluí-las das visitas, ou apenas não computá-las no limite máximo de 2 visitantes? Existem duas correntes. A 1ª corrente entende que as crianças não são computadas no limite de duas pessoas. Já a 2ª corrente, diz que crianças não podem visitar preso no RDD. Os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) - princípio geral e especial de atendimento integral a criança, garantia prioritária, proteção estatal, prevalência dos direitos do menor, indisponibilidade dos interesses do menor, recomendam a proibição dessas visitas. As Regras Mínimas da ONU, de 1955, no seu preceito 79, dispõe que se deve velar particularmente para que se mantenham e melhorem as boas relações entre o preso e sua família quando estas sejam convenientes para ambas as partes.

d)    o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.

O RDD também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade (art. 52, § 1º) (1), bem como para aqueles que recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando (art. 52, § 2º) (2).

Competência:

A autorização para a inclusão do preso em regime disciplinar dependerá de requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra autoridade administrativa, como, por exemplo, o Secretário de Segurança Pública ou da Administração Penitenciária. O RDD somente poderá ser decretado pelo juiz da Vara de Execução Penal, em decisão fundamentada, no prazo de 15 dias, ouvido previamente o Ministério Público e a Defesa (3) (art. 54 e parágrafos). Não se trata somente de uma mera decisão administrativa.

De acordo com o art. 60 da LEP, a autoridade administrativa poderá decretar o isolamento preventivo do faltoso pelo prazo de até 10 dias, em caso de urgência, aguardando a decisão judicial.

Poderá também, incluir preso no RDD, pelo mesmo prazo, no interesse da disciplina e da averiguação do fato, mediante despacho do juiz competente. Não há necessidade de oitiva do membro do Ministério Público.

Decorrido o prazo de 10 dias, não há possibilidade de prorrogação ou nova decretação pelo mesmo fundamento, retornando o preso a sua situação normal de encarceiramento, salvo inclusão definitiva no RDD.

O tempo de isolamento provisório ou inclusão preventiva será computado no período de cumprimento da sanção disciplinar (funciona como uma detração).

O RDD não poderá ser pleiteado pelo representante do Ministério Público e nem aplicado pelo juiz de ofício. Sempre dependerá de provocação.

O MP pode requerer inclusão de preso no RDD, de acordo com o art. 68, inc. II, alínea “a” da LEP. (4)

O juiz deve individualizar a sanção disciplinar pois o art. 57 da LEP diz que na aplicação das sanções disciplinares, levar-se-ão em conta a natureza, os motivos, as circunstâncias e as conseqüências do fato, bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão.

Não se admite sanção disciplinar coletiva. (5)

A União Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios poderão construir Penitenciárias destinadas, exclusivamente, aos presos provisórios e condenados que estejam em regime fechado, sujeitos ao RDD, nos termos do art. 52 desta Lei (art. 87, § único).

Dispõe o art. 5o da Lei 10.792/2003 que nos termos do disposto no inc. I do art. 24 da CF/1988, observados os arts. 44 a 60 da LEP, os Estados e o Distrito Federal poderão regulamentar o RDD, em especial para:

a) estabelecer o sistema de rodízio entre os agentes penitenciários que entrem em contato direto com os presos provisórios e condenados;

b) assegurar o sigilo sobre a identidade e demais dados pessoais dos agentes penitenciários lotados nos estabelecimentos penais de segurança máxima;

c) restringir o acesso dos presos provisórios e condenados aos meios de comunicação de informação;

d) disciplinar o cadastramento e agendamento prévio das entrevistas dos presos provisórios ou condenados com seus advogados, regularmente constituídos nos autos da ação penal ou processo de execução criminal, conforme o caso;

e) elaborar programa de atendimento diferenciado aos presos provisórios e condenados, visando a sua reintegração ao regime comum e recompensando-lhes o bom comportamento durante o período de sanção disciplinar.

Constitucionalidade do RDD:

A minoria da doutrina defende ser inconstitucional o RDD, pois fere o princípio da dignidade da pessoa humana, configura sanção desproporcional aos fins da pena, representa regime de cumprimento de pena não previsto em lei e gera bis in idem.

Já a maioria da doutrina, bem como o Superior Tribunal de Justiça, defende ser constitucional o RDD, pois ele não representa pena cruel, desumana ou degradante, respeita a proporcionalidade entre a gravidade da falta e a severidade da sanção, não é regime de cumprimento de pena, não viola o princípio do non bis in idem, pois, de acordo com a doutrina, não há bis in idem quando as sanções são de natureza diversa.

Prescrição da falta grave:

Apesar do silêncio da lei, o Supremo Tribunal Federal entende aplicar-se, por analogia, o art. 109 do Código Penal as sanções disciplinares. A contagem, no entanto, deve considerar o prazo mínimo (3 anos).

Fuga do preso – é falta grave. Exemplo: o preso fugiu no dia 01/01/2000 e foi recapturado no dia 05/03/2004. É possível punir o preso disciplinarmente? De acordo com o Supremo Tribunal Federal, não prescreve porque a fuga é falta permanente. Logo, enquanto não cessada, não corre o prazo prescricional.

(1) A expressão alto risco é direito penal do autor. Por isso, o alto risco precisa ser demonstrado com a prática de algum comportamento (isso é direito penal do fato).

(2) Em relação à expressão “suspeita”, a doutrina exige prova e não suspeita.

(3) Há necessidade de ampla defesa e contraditório para a inclusão no RDD.

(4) Art. 68. Incumbe, ainda, ao Ministério Público: II - requerer: a) todas as providências necessárias ao desenvolvimento do processo executivo;

(5) Art. 45. Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar. § 3º São vedadas as sanções coletivas.

sábado, 6 de agosto de 2011

Princípio da Culpabilidade e exclusão penal do agente.


Grande parte da doutrina penal moderna entende que a culpabilidade é um dos elementos constitutivos do conceito analítico de crime, cabendo a ela a função de analisar a possibilidade de imputar o injusto ao seu autor (crime é fato típico, antijurídico e culpável). A expressão nulla poena sine culpa significa que jamais será imposta pena sem que tenha o agente atuado culpavelmente. Sem culpabilidade não pode haver pena.

O princípio da culpabilidade, ademais, visa à eliminação da responsabilidade puramente objetiva, porque determina que se proceda a uma avaliação do fato em face do agente. No antigo sistema, antes de se desenvolverem os fundamentos dogmáticos do conceito de crime, a responsabilidade se assentava no princípio do versari in re illicita, segundo o qual todo aquele que tivesse realizado uma conduta irregular deveria responder por ela, independentemente de qualquer outra condição. Por outro lado, no direito moderno, a culpabilidade tem por base o fato e não as tendências ou disposições do autor. Com a culpabilidade se pronuncia sobre o autor, pessoalmente, em decorrência do fato por ele praticado e não de seu caráter, conduta de vida ou defeitos pessoais, um juízo de inadequação, pelo qual se afirma sua responsabilidade frente à ordem jurídica. Trata-se, assim, de um juízo jurídico e não moral.

A antiga postura de considerar que na culpabilidade se pronuncia um juízo de reprovabilidade sobre o autor está hoje em franca discussão. Os partidários da teoria finalista, ao proporem uma separação essencial entre os elementos do tipo e da culpabilidade, mediante a exclusão de seus elementos subjetivos, fixaram o conteúdo da culpabilidade no juízo de reprovabilidade. Mas a abertura funcional, proposta por Roxin e outros, passa a relacionar a culpabilidade aos objetivos preventivos da pena. Com isso, cria-se a base para reformular também o conteúdo de seu juízo: em lugar de juízo de reprovaçāo, que a poderia confundir com juízos de caráter moral, tem lugar um juízo de inadequaçāo. Esse é talvez o ponto nodal da questāo da culpabilidade. Como consequência, ademais, de um juízo de inadequaçāo, será possível conduzi-la em um sentido mais limitativo do que propriamente repressivo.

De acordo com essa nova tendência se manifesta TAVARES (2009, p. 412) “a culpabilidade desempenha, assim, o papel de filtrar as proibições e imposições normativas com vistas a proteger, em primeiro plano, a liberdade pessoal como pressuposto essencial da ordem jurídica."

Ainda o mesmo autor reforça esse argumento em obra específica sobre o tema:
O juízo de culpabilidade se inicia como um juízo negativo da capacidade de motivação. Esse juízo deve ser emitido como uma condição essencial da culpabilidade em um estado de garantia e não pode ser substituído por outras formulaçōes, sob pena de vir a se confundir com um juízo puramente moral (TAVARES, 2011, p. 133).

Com base nisso se pode dizer que a culpabilidade dever ser vista hoje como um elemento de garantia e não mais como manifestação moral, que está de acordo com uma ordem constutucional orientada pelo princípio da ultima ratio.

Atendendo a essa postura funcional, pode-se dizer que a culpabilidade conta com três requisitos, quais sejam, a capacidade de entender e de querer, a consciência da ilicitude e a normalidade das circunstâncias, manifestada pela exigibilidade de conduta diversa. Por meio desses elementos será possível aferir se o sujeito estava ou não capacitado a ser orientado pela motivação engendrada pela norma e, assim, merecer ou não os efeitos preventivos do direito penal.

Exclui-se a responsabilidade penal do agente sob a perspectiva da culpabilidade quando um desses requisitos é afetado. As causas excludentes da culpabilidade se dividem em grupos que abordam a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. 

A causa que afetar qualquer desses requisitos pode conduzir à eliminação da culpabilidade. Essas causas podem ser de ordem biológica ou psicológica, como, por exemplo, a doença mental ou o desenvolvimento mental incompleto ou retardado, a menoridade, a embriaguez completa e fortuita, e também de ordem psicológico-normativa, como o desconhecimento da proibição. Conjugadas essas causas a juízos normativos podem embasar a exclusão da culpabilidade. 

Assim, o desconhecimento da proibição, quando inevitável, dá lugar ao erro de proibição direto ou mesmo à descriminante putativa fática, nos quais se opera uma exclusão da consciência potencial da ilicitude e, consequentemente, da culpabilidade. Já a exigibilidade de conduta diversa pode ser afetada pela coação moral irresistível, obediência hierárquica e outras situaçōes semelhantes, até mesmo representadas por uma cláusula geral de inexigibilidade de conduta diversa, de modo a desculpar a conduta do agente.

Dentro desse panorama, deve-se ressaltar que todo juízo de culpabilidade pressupōe uma capacidade de culpabilidade, até mesmo para as teorias da reprovaçāo, como proposto na obra de Wezel. Este, aliás, não se descura disso, ao afirmar que:
A capacidade de culpabilidade tem, portanto, um momento cognoscitivo (intelectivo) e um de vontade (volitivo): a capacidade de compreensão do injusto e de determinação da vontade (conforme o sentido). Somente esses momentos em conjunto constituem a capacidade de culpabilidade. Quando por faltar maturidade ou em consequência de estados mentais anormais não se verificar um desses momentos, o autor não será capaz de culpabilidade (WELZEL, 1970, p. 216).

Embora finalista, parece que Welzel, aqui, se orienta de modo funcional, uma vez que, se a capacidade de culpabilidade está amparada em momentos intelectivos e volitivos, seu exame não pode estar dissociado do juízo acerca da capacidade de motivação do agente.



TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. 3º ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

TAVARES, Juarez. Culpabilidade e individualização da pena. Cem Anos de Reprovação. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Tradução de Juan Bustos Ramírez e Sergio Yañez Peres. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1970.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

É constitucional os tipos penais que preveem crimes de perigo abstrato?

Entende-se por crime de perigo aqueles que se consumam com a mera possibilidade de dano. Por conseguinte, o perigo pode ser dividido em concreto (que precisa ser comprovado) e abstrato (originário de uma presunção trazida pela lei em um determinado caso concreto, diante de um comportamento positivo ou negativo) (GOMES, 2007).

O Princípio da Ofensividade trabalha na questão dos chamados crimes de perigo abstrato, pois tal princípio orienta e limita o poder incriminador do Estado.

Esse princípio expressa que não há crime sem comprovada lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico, somente se considerando a existência de uma infração penal quando houver efetiva lesão ou real perigo de lesão ao bem jurídico. Só se considera existente o delito quando o interesse já selecionado sofrer um ataque ou perigo efetivo, real e concreto (CAPEZ, 2010). 

A doutrina discute em relação à constitucionalidade dos tipos penais que prevêem crimes de perigo abstrato.

Entendemos que o Direito Penal, dada a gravidade de suas sanções, deve tutelar os bens juridicamente mais relevantes para a sociedade, que são assim valorados a depender do contexto social em que se encontram. Deve a conduta ser criminalizada, se tornando legítima, se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico.

A intervenção penal só se legitima quando o agente, com sua conduta ofensiva, afeta bens jurídicos de terceiras pessoas. Não importa se o ataque se dirige a uma pessoa determinada, indeterminada ou a uma coletividade. Fundamental é que bens e interesses de terceiros entrem no raio de ação da ofensa, podendo ser uma lesão ou um perigo concreto. (BIANCHINI et al., 2009). 

A função principal da ofensividade é limitar a pretensão punitiva do Estado, de maneira que não pode haver proibição penal sem um conteúdo que seja ofensivo aos bens jurídicos. O legislador deve se abster de formular descrições incapazes de lesar ou de colocar em real perigo o interesse tutelado pela norma e, caso isso ocorra, o tipo deverá ser excluído do ordenamento jurídico por incompatibilidade com o expresso no texto da Constituição da República de 1988 (CAPEZ, 2010).

A função do legislador é proporcionar a tutela penal quando a sociedade manifesta sua intenção de proteger determinados bens jurídicos. Os tipos penais que prevêem crimes de perigo abstrato não obedecem a uma estrutura típica formal, bem como colidem com diversos princípios constitucionais. Enquanto os crimes de perigo concreto precisam ser comprovados para efeitos de consumação típica e estão previstos no tipo, os crimes de perigo abstrato prescindem da comprovação da existência da situação em que se colocou em perigo o bem jurídico protegido, gerando a punição pelo mero descumprimento da lei formal.

Outro não tem sido o entendimento de BIANCHINI et al. (2009, p. 313/314):
A construção de todo o sistema penal [...] deve partir da premissa de que não há crime sem ofensa – lesão ou perigo concreto de lesão – a um bem jurídico. A lesão ou o perigo concreto de lesão configura o que se chama de resultado jurídico.

O bem jurídico, por seu turno, integra a tipicidade [...]. Ao lado da tipicidade formal também é necessária a material.

Dentro desta dimensão material acham-se presentes dois juízos valorativos distintos, que são: (a) juízo de desvaloração da conduta e (b) juízo de desvaloração do resultado jurídico. No que se refere ao resultado jurídico (ofensa ao bem jurídico), sublinhe-se que ele necessita ser desvalioso. Não é qualquer resultado jurídico que atende as exigências da tipicidade material. É desvalioso quando ele for: (a) real (ou concreto), (b) transcendental, (c) grave (não insignificante), (d) intolerável, (e) objetivamente imputável ao risco criado e (g) pertencente ao âmbito de proteção da norma.

O resultado jurídico desvalioso, que passa a fazer parte da tipicidade material, requer um resultado: (a) real ou concreto (em virtude do princípio da ofensividade está proibido no direito penal o crime de perigo abstrato. Porte de arma de fogo quebrada ou desmuniciada: para quem não considera o princípio da ofensividade, há crime. Essa concepção, entretanto, segundo nosso ponto de vista, é inconstitucional; não se pode restringir direitos fundamentais básicos como a liberdade ou o patrimônio sem que seja para tutelar concretas ofensas a outros direitos fundamentais. [...]

De outro lado, a doutrina que não coaduna desse entendimento, considera ponto principal do injusto penal a criação de riscos não permitidos e não a causação de um resultado. Por essa teoria, justifica-se a proteção a bens jurídicos por meios de crimes de perigo abstrato, pois a lesão ao bem jurídico é evitada pela antecipação da punibilidade (ROXIN, 2007). 

Não corroboramos com tal entendimento e sustentamos a inconstitucionalidade dos tipos penais que prevêem crime de perigo abstrato em virtude do princípio ora analisado, pois quando o fato cometido se torna fato punível, ele deve afetar concretamente o bem jurídico protegido pela norma, havendo a exigência de ofensividade da conduta, para que seja considerada fato típico. Tais tipos de crimes violam o Princípio da Ofensividade, dentre outros princípios, sendo manifesta, por conseguinte, a sua inconstitucionalidade.

A intervenção do Direito Penal se justifica quando houver um ataque capaz de colocar em concreto e efetivo perigo um bem jurídico, que exerce papel fundamental como mecanismo garantidor e limitador dos abusos repressivos do Poder Público. Sem afetação do bem jurídico, não existe infração penal (CAPEZ, 2010).

Esse princípio deve ser enfocado como critério limitador da intervenção penal, considerada esta em suas duas essenciais dimensões: subjetiva (o estado é o único titular do ius puniendi) e objetiva (o estado só pode agir na medida em que autorizado pelo ordenamento jurídico) (BIANCHINI et al. 2009).

No âmbito do direito penal, de um estado democrático de direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado (BITENCOURT, 2004).

Assim, atenderemos a missão do Direito Penal que é atuar quando a conduta do agente ofender um bem jurídico, não sendo suficiente que ela se mostre apenas como imoral ou inadequada.

BIANCHINI, Alice; GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. Introdução e Princípios Fundamentais. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GOMES, Luiz Flávio. A Constituição Federal e os crimes de perigo abstrato, 2007. Disponível em: <http://www.lfg.com.br/public_html/article>. Acesso em: 13 jun. 2011.

ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. 2. ed. Madrid: Civitas, 2007.